sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Sociedade Secreta




          Desde cedo ela sabia ser diferente.
          Enquanto criança brincava como qualquer outra criança de todas as brincadeiras de criança, conhecia todas as brincadeiras de roda, pique-esconde, polícia e ladrão, pega-pega. Diferentemente das outras meninas topava todas as brincadeiras tipicamente de meninos também e não admitia ser tratada diferente, empinava pipas, jogava bola, nadava em rios.
          Ela teve a sorte. Cresceu livre. Correndo em pastos, nadando em rios e subindo em árvores.
          E mesmo assim ela ainda sabia ser diferente.
          Certa vez a título de conseguir uma arma para domar os filhos em horas de aperto a mãe contou a história de um tal de "Homem do saco". Esse homem era um andarilho, não tinha casa, vivia sujo, barbudo e com os cabelos todo desgrenhado. O "homem do saco" era um homem mau, ele pegava as criancinhas que não se comportavam bem e enfiava-os dentro daquele saco. Nunca mais se tinha noticias da tal criança.
          Ao se deitar a menina ficou pensando no que tinha feito durante o dia, será que teria se comportado bem? Ouviu um barulho do lado de fora da janela. O que seria aquele barulho? Já era tarde a casa toda estava escura. Todos estavam dormindo. Acordou o irmãozinho e ambos foram olhar por entre os vãos da janela.
          O medo consumia, tremia, suava, o coração batia descompassadamente e chegava a ouvir o seu som em meio ao silencio mortal que habitava a casa. E lá estava ele. O temível "Homem do saco", em carne, osso e saco. E olhava para ela do outro lado da janela como se pudesse vê-la. E a menina observou, apavorada porém a curiosidade era maior e aos poucos o "Homem do Saco' foi ficando menos assustador e até um pouco mais simpático. Talvez ele não fosse tão ruim assim...
          Do muro no fundo do quintal que dava para um pasto, conseguia-se enxergar um córregozinho, certa vez, depois de um pé-d'agua passageiro, o sol estava de volta e um arco-íris riscava o céu, a mãe dizia que lá no pé do arco-íris havia um pote de ouro guardado por duendes. Correu para o quintal, virou uma lata de ponta cabeça, subiu sobre ela e ficou contemplando o córrego, lá, era lá o final do arco-íris. E lá estava o pote de ouro, ele era grande, e irradiava uma luz amarela e seus guardiãos estavam todos apostos, guardando seu valioso conteúdo. Ao redor do pote existia uma pequena cidade. Ah essa cidade provavelmente só aparecia em dias de chuva. Era como a névoa.
          Sua imaginação vagou, sem rumo, sem porto, sem limites e de um salto já era adolescente.
          E nessa fase acreditou nos príncipes, esses se transformavam em sapos. E logo depois outro se apresentava, outros castelos se criava e mesmo com toda a semelhança com as outras sonhadoras, a menina moça ainda assim era diferente. Sua dor se confundia com a dor de suas personagens favoritas.
          Passaram-se os anos e de sonhadora encontrou sua diferença em mulheres fortes e encontrava seus ideais em novas filosofias, e o abismo abria-se cada vez mais.
          Certa ocasião acreditou que o problema era ela.
          Somente ela conseguia ver beleza traduzida em palavras nas coisas mais banais, ninguém mais parecia notar o que a encantava.
          E a mulher que quando menina viajava nas leves asas da imaginação hoje estava acorrentada dentro de si própria. Converteu em silêncio tudo o que  tinha a dizer.
          Os livros traduziam esse silêncio, supria suas carências e era sua companhia constante. E com os livros começou a conhecer sua diferença e acalentar a idéia que talvez pudesse encontrar seus semelhantes.
          E  conheci o significado da diferença.
          Os amantes dos livros, das histórias e das palavras formam uma sociedade secreta. E seus membros se reconhecem onde quer que estejam.

12 comentários:

  1. Ufa! Não estou sozinha! rs
    Suas memórias se parecem demais com as minhas
    Por fora tudo normal, mas por dentro....
    Sorte que Diferentes como nós, como Quintanas, Linspectors, Drummonds, entre muuuitos outros, sabendo que haveria sempre uma nova leva de Diferentes, deixaram para nós, na forma que mais amamos, um pouco deles...os quais muitas vezes foram meus melhores amigos.
    E verdade, nos reconhecemos...nós, da sociedade.
    (Fiquei pensando, qual seria a senha dessa sociedade? rss)
    Bjs

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  2. Bela recordação Kátia, escrita de uma maneira tocante,poética. Aém da constatação do que tudo foi(é)para você.
    Parabéns! E,

    tuas memórias, apesar de eu ser vinte anos mais velha :o)mexeram comigo. Lembrou-me minhã mãe que também falava no "homem do saco preto"; eu brincava de todas as brincadeiras independentemente dessa coisa de "menino" "menina" rs.

    grata.

    bjus

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  3. O Su, valeu! De coração.
    Josi e Su é uma sociedade secreta nos reconhecemos instantaneamente..

    bjão

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  4. Nos reconhecemos sim, Katia. Afinidades literárias,rs,mas não a vejo como secreta. Algo maravilhoso que deve se expandir e "contaminar" uma infinidade de pessoas.

    bjão.

    valeu!!!

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  5. Digo "secreta" Su no sentido de: Não sei se acontece com todo mundo mas comigo sim, olho uma pessoa e algo nela diz... ela curte ler. Ou o fato de encontrar alguém com o livro na mão já é a senha, identificação é instantanea... rs

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  6. Memórias são memórias, poeta! Maravilha de texto! Abraços.

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  7. :o) é que "secreta"(o)para mim tem uma outra conotação.(sociedade secreta- um grupo fechado)...rs.
    falou!!!

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  8. Infancia feita sob o signo do medo, assim se pensava controlar o impeto das crianças.Este homem do saco andou por Minas na minha infancia,rsrs.Hoje são questionados os pais por contar ou cantar estas estorias que implantava o medo.Um belo texto da Katia, que resgata esta memoria de um tempo de feliz idade.Muito bom,parabens katia.
    Sueli, como sempre uma pagina gostosa de visitar,nestes exercicios.
    Um abração Su.
    Bju.

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  9. Toninhobira,os textos são sim deliciosos, sou gratíssima a todos. Embelezam o blog :o)

    Um abração Toninobira.

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  10. Bom dia Sueli,

    Quem bom ler um texto como este, cada vez vou aprendendo um pouco mais.

    Um abraço, paz e bem

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  11. Bom dia Geraldo, O texto é da Katia Mota(belo né)

    Sim. Estamos todos aprendendo,aprimorando-nos e isso é sem fim, penso eu.:o)

    abraços.

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  12. E como se reconhecem! E têm seus códigos e palavras de passe, dogmas, rituais, mantras. Mas têm também muita esperança de se tornarem seres melhores.
    Lindo texto! Me senti fazendo parte dessa 'maçonaria' pois tenho paixão pela escrita.
    Grande abraço!

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