terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Um mimo para pessoas maravilhosas"

"É só clicar em cima do selo (copiar) e depois colar"
(Fiquem à vontade para colar)


                                                                                                                                

                                 

MUITA ALEGRIA NO CORAÇÃO

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Processo criativo literário

Antes de mais nada, gostaria de agradecer ao carinho da Sueli pelo convite e oportunidade de pertencer a este belo grupo de literatas.

Penso que é fundamental que um escritor saiba dar contornos às suas inspirações para que possa conduzir de forma coerente, até o leitor, aquilo que deseja expressar, seja por meio de longas narrativas novelísticas ou somente na beleza de curtos e contundentes poemas. Nem sempre as inspirações são transformadas em ótimos trabalhos literários, isso, em minha opinião, depende não somente da capacidade do autor em si, mas, também, de seu momento emocional.

Comigo, a inspiração ocorre basicamente de forma espontânea, mas já aprendi a estimular meu interior para que ela venha à tona quando preciso, em uma espécie de evocação de informações que se combinam a sentimentos muitas vezes armazenados em locais de difícil acesso de minha alma. A partir daí, a mente fervilha de ideias que precisam fluir e são jorradas com a força de uma represa que acaba de ruir, inundando, seja o papel, seja o gravador eletrônico, com todas aquelas frases, palavras e descrições de imagens que vão se atropelando à medida que são formadas dentro da cabeça.

Uma vez que tudo esteja diante de mim, para que eu possa “trabalhar” a argamassa da escultura, combinar as tintas da pintura, começo a lapidar meu carvão literário em forma de textos até transformá-lo em um diamante.

Daí para frente ainda entram outros processos: revisão, análise crítica, enfim, até chegar ao final, mas a essência da transformação ocorre mesmo é nos primeiros momentos após a inspiração, e não durante a própria.

No que toca aos romances longos, uso uma metodologia de construção que sempre me pareceu confortável, que é a de “montar o esqueleto” da obra que pretendo propor. Entro no processo criativo e vou imaginando os momentos fortes da narrativa, praticamente separando-os como tópicos de cada capítulo, até que eu tenha toda uma linha-base, digamos assim, do livro que surgirá. É claro, e já pude comprovar isso em todos os livros que escrevi, que de forma alguma esse esqueleto se transforma em minúsculos grilhões que me aprisionem à ideia inicial, porque é natural que as histórias evoluam, ganhem vida e implorem por mudanças que são rapidamente inseridas e então o esqueleto é ajustado.

Atualmente, não imagino outra forma de trabalhar os romances longos. Sinto-me tão seguro com essa metodologia que, no primeiro volume da série Horizontes, cheguei a escrever os dois capítulos finais do livro antes mesmo de escrever seu prólogo. Depois segui o esqueleto, claro, com um ajuste aqui e outro ali, fazendo o encaixe necessário quando cheguei aos últimos capítulos.

Saudações literárias!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Sueli querida e colegas aqui do blog,

Eu não saberia responder a esta sua pergunta, sinceramente. Porque as palavras me chegam de diferentes formas, por diferentes motivações. Umas vezes sou a dona delas. Outras elas se apoderam de mim. Podem nascer de lembranças, da imaginação, da observação, da intuição. Podem ser um parto fácil, difícil, por vezes a fórceps. Mas ser um ser de linguagem é o que me permite fazer uma ponte capaz de me vincular ao outro. É um canal aberto para um ir e vir constante. Umas vezes as palavras recriam em mim um monte de vidas que tomo de empréstimo; então, escrevendo, vou sentindo  emoções que até então eu não teria a menor chance de experimentar.  Outras vezes elas saem  bem de dentro de mim e ao sairem das minhas regiões abissais, me revelam coisas até então inéditas pra mim, me ajudam a organizar meus pensamentos e sentimentos, me encorajam a me deixar revelar aos outros. É assim. As palavras são as mesmas, são de todos, são de quem as sabe amar. Mas ler e escrever  tem sido o ponto e contraponto  necessários para ligar estes dois mundos: o de dentro e o de fora. Não sei como, nem quando, nem porque acontece. Mas quando algo lido ou escrito fazem estas conexões é uma sensação de prazer impossível de descrever em palavras.

Meu presente é o desenho do que tentei dizer. Este cara do vídeo é um artista italiano fantástico. À sua maneira, faz com que, através  do papel, tudo caiba dentro dele e dele saia, algumas vezes de forma surpreendente. Espero gostem. Beijos meus a todos.


O primeiro de tudo é a foto

Considerações sobre o processo criativo

O primeiro de tudo é a foto! Eu a utilizo como matéria prima. É dela que tiro traços, curvas, ângulos e texturas. É também dela que surgem parágrafos, vírgulas, acentos e frases.

Vejo pontos, rachuras e tracejados. Aparecem os personagens, cenas, pretextos; vilões e heróis fazem ponta em cenários nunca antes pisados. As histórias brotam  e nascem os argumentos, despontam os roteiros, eternizo emoções e fatos. A realidade e o imaginário se cruzam, mas evito os adjetivos para abrir caminho aos substantivos, ações e, ao sempre bem vindo, verbo. 


Não posso esquecer o movimento! Talvez seja o momento mais importante. Ele mostra o motivo e explica a razão! É a circunstância que precisa ser eternizada. É mágico e simples.
A inspiração antecede a foto, mas é da imagem que surge a narração.

Em meu processo, visualizo a cena e movido pelo sentimento puro da transmissão, como se tomado por uma entidade, começo a trabalhar. A mesma atenção que uma tecelã dedica ao seu tapete eu apresento em minha trama, cada passagem da agulha se compara com a tinta de minha pena.

Como descrever o meu processo criativo? Pergunta difícil. Acredito que seja algo que surge quando tentamos unir amor e ódio, técnica e estilo, só assim vejo nascerem textos dignos.

O processo criativo me acompanha o dia todo, cada cantar de pássaro ou peripécia infantil é digno de nota em meu eterno companheiro: o bloco de anotações. Nos momentos difíceis apelo, faço surgir o gravador, nele registro minhas memórias mais íntimas. Histórias secretas que perseguem o autor. Temas em busca de final e finais em busca de histórias.

O primeiro de tudo é a foto, mas tudo termina, e(m) ponto.

PS - Somente após as postagens percebi que era para fazer em post único. Desculpem o deslize....
No meu processo criativo tenho outro problema, a ansiedade.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Enxerto Poético

Com toda certeza sou a pessoa mais relapsa com relação a escrita de todos nós. Perco um monte de coisas, não registro. A desorganização em pessoa. O que não pode ser diferente o processo criativo, não tenho nenhuma regra a não ser a de estar sozinha. E qualquer coisa se torna mote. Porém, há períodos de total escuridão e não consigo escrever, aí apelo para qualquer coisa, filmes, livros, poema, músicas, rezas, mandingas e orixás e o que vier é lucro.

Meu presente é Enxerto Poético - Cantáteis, o qual ouvi o Chico César declamando, transcrevo aqui, porém, nada se compara ao próprio. Sintam-se todos presenteados por favor.














Enxerto poético (Cantáteis)

Chico César.

Seu poeta preferido,
Bem antes de ser ferido
Já era ferido.
Antes.
Não visitou as bacantes, as nereidas e as ninfas.
Quis beber de sua linfa.
Esperou…
E não morreu.
Esse poeta sou eu.
De lira desgovernada.
Delírio, musa, amada.
Orfão, bisneto de orfeu.
Eu pra cantar não vacilo.
Digo isso, digo aquilo.
Digo tudo que se disse.
Digo Veneza.
Recife.
Fortaleza que se abre.
Quero que o mundo se acabe.
Se não disser o que sinto;
Digo a verdade.
Minto…
Vertente me arrebata.
Minha voz é serenata.
Labareda e labirinto.
A pena de uma galinha;
Trinta caroços de pinha.
Doce delíro de Vate
Um colírio, um tomate.
Um cartucho de espingarda.
O sangue da onça parda.
É tudo que trago e tenho.
Nada tinha de onde venho.
Leio o que arde sozinho.
Beba comigo do vinho;
Da arte do meu engenho.

Aos que vierem depois de nós - Bertolt Brecht

Em minha adolescência me deparei com um poema que ficou na minha memória. Meu encontro com esse trabalho, de Bertold Brecht, foi através de um informativo, da editora Devir, sobre histórias em quadrinhos.

Ainda tenho esse pedaço de papel em meu baú de manuscritos, engenhocas e feitos e compartilho com os leitores do blog no post abaixo.
Este é meu presente a todos que nos acompanham...


"Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.


Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência."

E assim tem passado o nosso tempo??

domingo, 13 de dezembro de 2009

A (s) Proposta (s)

1ª Processo Criativo
2ª Deixe um presente

DATA DA POSTAGEM- 21/12
                   (as duas propostas no mesmo post)

Qual seu processo criativo? Como se dá a elaboração de seu(s) texto(s) seja (ele) em prosa ou em poesia. Do nascimento de uma idéia, da chamada “inspiração” (com tudo o que a palavra implica) à efetivação da obra propriamente dita, que caminhos percorre? Prefere silêncio? Ou musica ou um olhar pela janela do escritório, do carro, do mêtro. Talvez nada... e o texto chegue inesperadamente feito chuva em noites de tempestade.
Conte-nos.

Um presente... Que pode ser uma imagem, um poema de autor preferido ou seu. Já que o clima é de festa, aqui, comemoramos poeticamente.

Aos “autores e seguidores” do “escritoslinguagemnocorpo” fica o meu presente



O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.
Fernando Pessoa.

Novas propostas em 05/01/2010
Forte abraço

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O Dia que Fizemos Contato

Um homem atravessa uma rua no centro da cidade quando sua atenção é atraída para a entrada de um bueiro. Na escuridão úmida do subterrâneo, um par de olhos o observava.

Fixou a visão, acertou o óculos, curvou o corpo procurando melhor ângulo e sentiu um frio lhe percorrer a espinha. Não era um simples olhar, ele tinha fome e desejo.
Ergueu as mãos em direção à boca, seguindo o impulso doentio de roer unhas, mas desviou o movimento em busca de uma testemunha.

Agarrou o braço de um executivo. O homem engravatado em pleno sol do meio-dia, carregando uma maleta e com celular de encontro à orelha, se assustou com o gesto.

Bastou um simples aceno de cabeça para perceber que sua atenção foi chamada para observar o bueiro. Sem compreender muito bem o que acontecia atendeu ao chamado. O executivo arregalou os olhos, abriu a boca em gesto de espanto e não acreditou no que viu.

Dentro do bueiro haviam olhos. Definitivamente eles estavam sendo observados. A dupla permanecia parada, surpresa diante da constatação, não eram olhos humanos. Essa era a única certeza.

Um policial se aproximou disposto a acabar com a reunião daquela dupla estranha. Para a autoridade eles estavam sob o efeito de algum alucinógeno, afinal, o que levaria duas pessoas a ficarem estáticas na rua observando um bueiro.

Aproximou-se, precavido, colocou a mão sob a arma e se preparou para atitudes extremas. Antes de impor qualquer ordem olhou para o bueiro.

Os braços ficaram flácidos assim que constatou, com temor, a razão do comportamento estranho. Olhos o observavam, e não eram olhares comuns, havia medo e desafio. As pernas tremiam e os movimentos pareciam mais difíceis.

Em poucos minuto o trânsito parou, uma multidão se formou em torno do bueiro. Nenhum veículo podia passar e as equipes de reportagens se posicionavam em busca do melhor ângulo daquele buraco.

O primeiro a observar os estranhos seres que transitavam na superfície desmaiou de temor. Logo outros se aproximaram e se assustaram com aquilo que estava tão próximo e nunca antes foi visto, havia vida na superfície.

Uma multidão se formou e grupos se revezavam para dividir a abertura que garantia o contato entre as duas raças.

Tão próximas e tão distantes, tão iguais e tão diferentes.

Uma multidão se formou. Crianças também queriam experimentar o prazer de observar aqueles seres esquisitos que escondiam o corpo e carregavam estranhos apetrechos.
Alguns, na inocência riam. Outros choravam em pânico, temiam que a superfície despencasse sobre suas cabeças.

Exploradores se posicionavam com marretas e brocas. Seguiam rumo à superfície.
Esse foi o dia em que fizemos contato.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Via de mão única



- Este homem atravessou a rua. Atravessou sem olhar se vinha carro.
- Meu Deus! Mas porque ele não olhou pros dois lados?
- Sei lá, na pressa, ele sempre pegava o ônibus no corredor central.
- Triste isto. Era um bom homem. Trabalhava de jardineiro na maioria dos escritórios por aqui. Era muito conhecido nas redondezas. Pegava o 2301 todo dia. Mas hoje, vai se saber porque, resolveu atravessar pro outro lado....
- Já avisaram a família?
- Estamos tentando....

Era este o burburinho naquela rua tão linda dos jardins. Gente se ajuntando, falando ao mesmo tempo, observando de perto o corpo estirado no chão da alameda arborizada, larga, dividida em duas por um passeio central. Fim de tarde, tarde de primavera.

Somente a moça da janela saberia dar respostas a tantas perguntas. Era uma moça linda, alva, delicada, ares do paraíso. Passava os dias pendurada na janela do andar de cima do sobrado. Infiferente ao tempo, misteriosamente disponível, sempre olhando o movimento. Como uma namoradeira, daquelas que enfeitam as janelas dos antigos casarões de Minas. Com a diferença que se mexia, seduzia, sorria, piscava, lançava olhares de promessas.
O alvo escolhido estava do outro lado da alameda. O jardineiro que deu pra passar os dias sonhando acordado com ela. Já não conseguia mais se concentrar apenas em cuidar de seus jardins. A atenção se dividia entre o trabalho e a mais linda flor; de maior frescor, viço e beleza, que queria cuidar. Foram meses a fio assim. Aquela moça não se ausentava nunca da janela. Dia após dia a mesma rotina. A janela abria-se pela manhã e só se fechava quando o ônibus que o levava sumia no fim da rua.

Tantas vezes já havia sinalizado para que ela descesse e o encontrasse no corredor central... Nada. Assim, foi crescendo a vontade de atravessar a rua por inteiro, de não parar no meio. Suspeitava que ela jamais iria descer para encontrá-lo. Súbito, um pensamento apavorante. Pior ainda que o medo de chegar perto e ver o encanto quebrado. E se um dia ela deixasse de abrir a janela? Não, ele precisava fazer algo por eles.
No dia em que a viu pela primeira vez, havia plantado uma roseira. Observou que o primeiro botão se abriu finalmente. Era branco, lindo. Parecia com sua diva, em cor e frescor. Este era o sinal de que havia chegado a hora, há de ter pensado. Era agora ou nunca.

Fim de mais um dia de trabalho. Com a tesoura de poda cortou a flor recém aberta. Coração aos pulos, atravessou a primeira metade. Ao longe avistou o 2301 vindo, como de costume. Um olhar de quem pedia, pela última vez, que ela descesse e fosse encontrá-lo. Nenhum gesto que esboçasse uma reação. Nenhum movimento.
Antes que o onibus estacionasse e lhe fizesse desistir, saiu em desabalada carreira em direção ao portão do sobrado. Se era pra ser assim, que fosse. Olhou apressadamente para o lado errado e correu. Uma freada brusca, o barulho seco de um corpo caindo no asfalto. A mão aberta. A rosa branca caída, tomando a cor da paixão, tingindo-se de vermelho pelo sangue que escorria.

Em seu medo de perder a perfeita imagem de amor idealizado, se oferecendo a ele, alí tão perto, se dispôs a fazer todo caminho sozinho. Durante meses , sempre com o olhar fixo apenas nela, nunca percebeu que a via era de mão única. Morreu desavisadamente, tentando suprir sozinho, pelos dois, todo trajeto. Como é longa, na maior parte das vezes vã, uma travessia assim, solitária..... só ida, sem vinda...
A janela do sobrado fechou-se , agora de vez. A multidão já dispersou-se, sem encontrar respostas. Também, agora elas já não interessam mais.

Um homem atravessa a Rua...

Um homem atravessa a Rua...
Não a rua, mas, aquela rua. Rua Alemanha. Localizada no Bairro Jardim Europa, na cidade de Sorocaba.
Algumas lombadas, alguns buracos, algumas casas, velhas e novas casas. As velhas são dos moradores que fundaram o bairro, assim como meu pai, as novas, são de moradores que apostaram nesse bairro de classe média.
São poucas as casas dessa rua. Também existe aqui uma igreja “Salão do Reino das Testemunhas de Jeová”.
Sempre existiu uma inquietação em mim. Testemunhas de Jeová?
Títulos, Signos? De acordo com a fé, hão de ser sim testemunhas, servos, ou o que quer que seja.
Em dia de reunião, sempre há um grande movimento nessa rua. Só assim, só “as testemunhas” para fazer essa rua “bombar”.
“Bombar” no bom sentido, bairro de classe média é realmente um tédio para morar. Alguns amiguinhos da escola moravam na periferia e diziam que lá sim, é que existia vida...
Pode ser. Mas, o homem, o homem atravessa a rua. Não! ele, não foi em direção ao salão das testemunhas.
Homem, descrente será? Ateu, será? Observo cada passo desse homem. Passos lentos, serenos. O rosto é belo, que homem belo. Bem vestido, cheiroso. Deve ter uns 22 ou 23 anos.
Ele não notou minha presença. Estava sentada na calçada em frente a minha casa. Observando esse homem. Não! definitivamente ele não me notaria, eu de apenas 14 anos. Uma criança. Uma criança.
Que bom seria se adulta fosse? E tivesse sorte. E chegasse a ele. Que bom seria, se por um instante, ele me notasse e me demonstrasse que ele me queria.
-Vem almoçar! (É minha mãe chamando). - Vem Almoçar Judite! - Já vou mãe.
- Já vou!
Judite... Ele deve ter escutado o meu nome. Lá na escola tiram sarro, dizem que o meu nome é nome de velha. Se ele pensasse assim, talvez, olhasse, olhasse para mim. Por um minuto, apenas por um minuto, amei meu nome. Atravessou a rua e do outro lado da calçada, ali, em minha frente fala ao celular. Parece que procura o vizinho, aperta a campainha e ninguém atende.
Ele podia perguntar-me sobre o vizinho. Eu sei que o seu Dito trabalha o dia todo e só volta quando já está de noite. O seu Dito mora sozinho perdeu a mulher há pouco tempo. Ouvi minha mãe dizendo para o pai:
- Coitado do seu Dito, que sofrimento, 40 anos de casado, sem filhos, agora sem mulher. Temos que dar um apoio. Desde então quando ele chega do trabalho e eu estou na minha calçada. Vou logo puxando papo.
-Tudo bem seu Dito? Hoje o dia do Sr. foi legal? Separei uns tomatinhos cerejas que o Sr. tanto gosta. Seu Dito, qualquer hora dessas vem jantar em casa?
Seu Dito é calado, ele somente solta um sorrisinho meigo. Eu acho que ele gosta de mim.
Tive coragem. - Moço está à procura do seu Dito?
- Sim.
- Ele só volta a noite.
- Aluguei a edícula dele. Trouxe todas as minhas coisas. Pensei que já pudesse acomodar-me.
- Acomode-se em casa, enquanto ele não chega. Almoce conosco. Já que seremos vizinhos.
Batia forte o meu peito. Minhas amigas diziam dessa tal coisa e somente ali eu entendi o que era. O que era amar. Amor a primeira vista. Sim, foi o que senti.
-Obrigado, mas, não posso aceitar. Mas, muito obrigado mesmo Judite, você é uma menina muito gentil.
Fiquei quieta. Muda.
Ele atravessa a rua. Vem em minha direção. Suei frio. Ele pára em minha frente e pede para eu avisar o seu Dito que a noite ele volta.
Foi para o carro.
Estou aqui na calçada. O seu Dito há três anos faleceu. Falaram que ele morreu de tristeza.
Coitado do seu Dito. Há oito anos eu espero todas, todas as noites que aquele belo moço, lindo moço, volte à casa do seu Dito. Coitada de mim!
Ele nunca mais voltou. Mas, a cena está tão viva em minha mente é a gostosa nostalgia de enxergá-lo em minha lembrança todo o tempo. Aquele lindo homem que atravessa a rua.
Seu nome? Não sei! Onde estás? Não sei. Quem é? Não sei.
Não me importo, entendi que como o nome da igreja, tudo é título.
Mas esse amor está aqui latente no meu peito. Atravesso a Rua.
Comprei a casa de seu Dito e a qualquer momento, penso que a campainha vai tocar e esse homem vai lembrar.
- Judite!

Fim do mundo



Um homem atravessava a rua. Movido pelo impulso primitivo de chegar. Foi tomado de pânico quando o encarregado de sua sessão se dirigiu a ele aflito "Na sua casa Homem..." deixou tudo, cego...

Já na rua nem mesmo o som dos pneus gritando no asfalto o tiraram de seu devaneio torpe, instintivamente um andar bêbado, trôpego.

O centro da cidade, as ruas em mão dupla e os carros que não davam trégua não indimidavam. Pobre cavaleiro e seus moinhos de vento.

A ausencia de um abrisa empapavam sua camisa em suor, apertava os olhos ao reflexo do sol impiedoso sob as paredes brancas das casas. Buzinas, pneus e caos, um turbilhão de burburinhos rondando sua mente. O sol castigava-o menos que as correntes que apertavam seu peito.

Andava a esmo e a avenida parecia não ter fim, longa, muito longa. Pessoas serpenteavam a sua frente impedindo assim o seu avanço. Atravessou a avenida sem olhar. As árvores nas calçadas não projetavam sombras e o caminha ficava cada vez mais longo e difícil, árido.

Já conseguia divisar lá em cima a esquina que seria a última para que no meio da rua estivesse a casinha com as paredes amarelas um pequeno jardim que morava desde que se casara com ela.

O sol começava a dar uma trégua mas grandes nunvens castanhas tomavam espaço no céu, na rua em frente a sua casa estava tomada de pessoas, curiosos, carro da polícia, ambulância, disputou espaço com aquelas pessoas a tapa. Abriu espaço e correu para a porta, não conseguia ver nada anormal na pequena sala caiada, parcamente mobiliada. Os policiais tentaram o demover acreditando ser mais um curioso, porém, seriam necessário um batalhão para que ele não entrasse no quarto do casal.

Ali na cama, abatida, ofegante, banhada em suor e sangue, estava ela, com um sorriso satisfeito no rosto e o seio alimentando o pequeno menino que acabara de chegar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Começo da narrativa

Como os escrevinhadores, aqui, são “feras”, nossos dois encontros começaram de certa forma com uma dose de complexidade (personagens travestidos de outros, abordagem detalhada das características físicas e psicológicas das personagens e por aí...)

Não que a proposta de hoje seja de menor valia, ao contrário, mas é um processo conhecido de todos, todavia, bastante eficaz e aplicado pelos grandes escritores.
Pensando na história como uma viagem, percebemos a importância do começo da narrativa para provocar o leitor, despertar sua curiosidade, seduzir sua imaginação. Isto posto, como se faz o começo?
Muitas vezes, a história começa com a criação de um “clima”, de uma “atmosfera”, para sensibilizar aquele que lê. Pode ser uma “atmosfera” lírico-amorosa, de medo ou de mistério, por exemplo.
A criação do “clima”, geralmente, se obtém recorrendo à descrição.
Pode-se descrever o lugar, o espaço, o ambiente, ou seja, fazer uma caracterização do cenário onde o caso vai acontecer.
Logo nos primeiros parágrafos  já observamos, que Eça de Queirós utilizou esse recurso para introduzir a história de seu romance “O primo Basílio”. Primeiro descreveu brevemente o protagonista, depois, o ambiente.


PROPOSTA – DATA DA POSTAGEM 7/12/2009


Começar uma história a partir de um mote

“Um homem atravessa uma rua....”

Crie uma atmosfera sugestiva, a partir da caracterização dos elementos narrativos presentes na frase.



Mãos à Obra







segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Inspirações Poéticas - Por Marinês


Rindo à toa. A mãe sente que o filho está bem e despede-se.
Carlos continua a beber sua cerveja e a tocar.
Naquele exato momento, tem a ideia de compor. A composição é uma mistura da angústia que tinha vivenciado aquela tarde, com a felicidade de estar ali com a situação superada e continuar tocando.
Tocando "literalmente" a vida e a música. A música sim, é que era algo relevante em sua vida. E o amor?
Carlos, até hoje não vivenciara uma história a dois. Nesse momento, ele lembrou-se de Clarice Lispector,daquele conto do cego mascando chicles e que interferiu na rotina da dona de casa e a despertou para algo. Coincidentemente o Conto chama-se Amor. Pensou que seria bom vivenciar o amor.
Ele gostaria de interferir na rotina de alguém.
Seria bom!
Lembrou-se de Fernando Pessoa e acreditou que tudo vale realmente a pena, se a alma não é pequena...
Carlos, era um homem de grande alma.
Lembrou-se de Drummond..essas coisas!!! pensou ser tolo, pois, virava e mexia a cena do escritório ...a humilhante cena...remoia os seus pensamentos...e então, Drummond surgiu de novo em sua lembrança e que como disse o poeta:
- Você não está mais na idade de sofrer por essas ...essas coisas!!! e ainda o mesmo poeta, alertou:
- No meio do caminho, tinha uma pedra...tinha uma pedra no meio do caminho...
Pensando nessas belíssimas escritas, tão poéticas, Carlos viu que também se chama Carlos assim como Drummond e que faria de sua composição uma mistura desses autores que tanto admirava , nesse contexto, sua inspiração compilada ficou assim:

Você não deveria mais sofrer por essas coisas, Carlos!
Carlos, tudo, tudo vale a pena se a alma não é pequena...
A Carlos no meio do caminho tem pedras. Carlos tem pedras no caminho, mas, não desista, pois, quem sabe, o bonde passa e se por ventura, você estiver no ponto e ao mascar chicles, num simples e singelo gesto.
E por esse gesto você conquistar uma certa “Ana” assim como a personagem “Clariciana”...
Se isso acontecer Carlos...
A Carlos, sorria!!! E faça várias bolas coloridas com a goma de mascar.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Clarão no escuro.




Valentina morava em um apartamento alugado no antigo e decadente centro de São Paulo. Vendia suas carnes para garantir seu sustento. Mas, a bem da verdade, vendia muito mais que isto. Vendia companhia, vendia alívio para solidões urbanas, vendia mentiras, algumas sinceras. Vendia o equivalente a uma viagem de ópio ou LSD nas veias; com a vantagem adicional de não ser um comércio ilegal. Cobrava por isto, mais que justo.

Todos a conheciam nos bairros da redondeza. Chamavam-na de a “ ceguinha massagista”. Debochada, gargalhava alto sempre que ouvia ou sabia de alguém se referindo a ela desta forma. Como é dificil para as pessoas darem nomes aos bois – e às vacas. Parece doer. Nem ceguinha, nem massagista. Menos ainda deficiente visual e profissional do sexo. O que ela era mesmo era uma puta. E que P-U-T-A! Levava a sério o seu trabalho, nada fácil. Mas também, nada difícil se comparado às peças que a vida lhe pregou, desde sempre. Sagrava-se ao seu profano ofício de corpo e alma. E detestava eufemismos. Saber-se e declarar-se, sem reservas, uma puta, era a mais clara demonstração de que ela nunca teve medo de assumir a sua própria experiência existencial.

Jamais aceitou o papel de vítima. Não combinaria com ela. Seus pais eram cegos de nascença. Por capricho, burrice ou sabe-se lá porque, resolveram jogar dados com Deus. Era a mais nova de três filhos e, na roleta russa de seus pais, ela tinha sido sorteada. Era a única que nasceu cega. A cegueira era apenas a cereja de um bolo feito de pobreza e exlcusão vivida por uma famlia de trabalhadores rurais. Jamais perdoou seus pais por isto. Trazia dentro de si um grito contido, uma revolta que, misturados à uma dignidade nata, davam-lhe forças para seguir. Ainda menor de idade e anciã em espírito, na primeira oportunidade, tirou proveito da sórdida tara que o todo poderoso dono da fazenda, patrão de seu pai, demonstrava sentir por ela.
Acertos foram feitos entre eles para que ela se mudasse para capital e morasse com a família do patrão. A desculpa era de que seria companhia para os filhos pequenos do casal, uma espécie de babá que nada vê. Bem conveniente. A partir daí a historia não foi muito diferente de tantas outras semelhantes. Um dia descobriu que poderia cobrar pelo que vinha dando em troca de comida e teto. E caiu no mundo, literalmente.

Perspicaz, inteligente, não demorou a descobrir que tinha atributos que a diferenciavam no mercado de venda de carnes humanas. Sim, não era só um pedaço de carne nova e rígida. Ela tinha um dom especial. Sua alma era robusta. A alma de um xamã, o curandeiro ferido, capaz de , por isto mesmo, compreender e tratar as feridas alheias. Possuia uma antena delicadíssima com a qual captava todas as dores e desejos do mundo, dos homens em especial. Alem disso, criada solta entre os bichos, e depois filha das ruas, nao conhecia os falsos pudores ou as amarras da moral burguesa cristã. Tão pouco acreditava em Deus, embora soubesse que ele, mesmo não existindo, estava sempre no comando. E, no seu caso, parece que ele sentia um prazer quase mórbido em testar, a todo momento, sua resistência e seu estômago. Para ela a vida era apenas isto: um teste de resistência, uma ordem, um comando. Teimosa, tinha a mania que quase todo excluído desenvolve: mania de sobreviver.

Vivendo às escuras, não era nunca traida pela visão. Enxergar, às vezes, nos cega. Ouvidos atentos, tudo escutava e quase tudo compreendia. Falava pouco,quase nada. Em seu ofício, aprendeu a falar apenas e tão somente o que seus tantos posseiros desejassem ou precisavam ouvir. Abençoada ou amaldiçoada pelos dons de Afrodite, o toque de sua pele, de suas mãos, sua língua, eram capazes de levar o mais racional dos homens a perder a razão. Sábia, a natureza a havia compensado com o dom de iludir e enebriar os sentidos. E a prática a levava perto da perfeição nesta arte.

Solitária, bonita, corajosa, Valentina fazia jus ao seu nome. Puta valente, desejável e desejada. Etérea, fluida e fugidia. Seu corpo e sua alma pareciam feitos de barro. Amoldavam-se nas mãos que a tocavam e se transformavam no que o sonho ou delírio do outro quisessem. Uma gueixa, uma mulher de Atenas, sempre pronta para permitir que dela se servissem sem cerimonia. Reinventava-se e reinaugurava-se a cada novo homem com quem dividia o leito e ai residia seu poder. Saber esvaziar-se de si mesma, fazer –se indigente de desejos próprios e plena dos desejos alheios. Pronta a materializar-se no desejo de qualquer homem que estivesse disposto a lhe pagar por isto. Mas uma vez pago, não sonegava, não trapaceava ,não barganhava. Fazia valer cada centavo.

Talvez porque, uma vez paga, usufruia do quase mórbido e inconfessável prazer em saber que seus homens – era assim que ela se referia a eles – criavam, com o tempo, a mais absurda dependência dela. Como poucas mulheres sabia ler as carências da alma masculina e preenchê-las com sua agridoçura. Por isto mesmo, seu vôo sempre foi solo, nunca precisou que a agenciassem. Sua propaganda era boca a boca e sua clientela fidelizada e selecionada. As condições eram impostas por ela. Sim, havia condições. Dentre as quais, três eram inegociáveis. Jamais atendia no apartamento em que morava; jamais falava palavra sequer sobre si mesma, jamais revelava seu nome verdadeiro. Seu nome de guerra era Cristal. Duro e transparente como seu coração, Valentina se resumia apenas nisto, um coração lindo, duro e transparente como uma drusa de cristal.

O prédio onde morava era daqueles antigos, lá pelos lados da Barra Funda. O bairro, depois da migração dos judeus para Higienópolis, era agora totalmente comercial, com alguns poucos imóveis residenciais decadentes. Valentina morava em um deles, bem antigo, de seis andares. Seus vizinhos, como convém à hipócrita classe média, fingiam não saber do que ela vivia. Mas apenas fingiam. Todos sabiam. Até a perdoavam. Afinal, ser cega lhe rendia algumas indulgências. Ela se lixava pra isto. Alguns, mais genuinamente cínicos, chegavam a se achar no direito de obter favores, literalmente favores sexuais. Mas nenhum se atrevia a propor algo assim, abertamente.
Ela queria mais é que todos se danassem. Todos, menos três de seus vizinhos: os seus dois vizinhos de porta, no penúltimo andar daquele cortiço vertical e um intigrante e silencioso vizinho do último andar. Não sabia nada sobre eles, especialmente não sabia nada sobre o vizinho do andar de cima.

Seus vizinhos de porta não faziam segredo de que a cortejavam. Todo dia, quando ela chegava, depois de um dia exaustivo de trabalho, lá estava um deles esperando por ela. Parecia que haviam combinado um revezamento de cavalheiros. De uns tempos para cá, ela nunca subia sozinha. Subiam sempre em três. Ela, um dos vizinhos de porta e o misterioso morador do último andar que, todo dia, impreterivelmente, estava no hall à mesma hora que Valentina chegava. O ritual se repetia. No quinto andar, a porta se abria, o homem do sexto andar adiantava-se em descer, estendia-lhe a mão para que ela saísse do elevador, sem dizer palavra. Nem mesmo quando ela lhe agradecia a gentileza ouvia dele alguma resposta. Em seguida descia o vizinho de porta do dia, e o elevador se fechava e subia ao som do burburinho de vozes e risos de Valentina e seus vizinhos.
O vizinho da esquerda decidiu que iria conquistá-la pelo olfato. Sabia que os cheiros podem ser um convite ao pecado e chamam o sentido da gustação. Marcava sua presença pelo uso de uma deliciosa colônia que aprisionava os cheiros de relva. Também deixava a porta de casa entreaberta e de lá se insinuavam os mais exóticos cheiros. Perfumes adamascados e amadeirados. Já o vizinho da direita, apostou em usar armas que a conquistassem pela audição. Sabia o quanto uma voz macia, segura e aveludada pode conseguir de uma mulher. Não sem razão, se diz que uma mulher é capaz de ir ao gozo guiada pelo que ouve. Deu à vida de Valentina uma trilha sonora, das mais cuidadas e sofisticadas. Um amante e estudioso da boa música, desde sempre, tocava seu sax com maestria crescente. Sempre que tinha oportunidade, lia para ela pequenos trechos de poesia, uma poesia encharcada de conteúdo discretamente lascivo.

Valentina se enternecia pela delicada devoção que ambos lhe dedicavam. Mas, no seu íntimo, sentia pena deles. Pena por saber que ambos jamais chegariam a tocá-la como mulher. Nem ela mesma sabia qual era o caminho que levava a seu coração, terra de ninguém. Mas sabia os que não levavam. E o sentimento de compaixão, especialmente em uma mulher, esteriliza o terreno para o surgimento de qualquer outro sentimento. Valentina sabia que eles a desejavam e a amavam apesar de ela ser cega e ser puta. Mas era exatamente este “apesar de” o golpe mortal em suas chances de vir a tê-la. Estes dois atributos eram toda sua essência. E ela não se dispunha a viver um amor de ressalvas. Por isto não se dispunha a viver nenhum amor. Business, tudo era business quando o assunto era homem.

Um dia, quebrando a rotina, Valentina chegou na portaria do prédio e não encontrou ninguém. Já estava dentro do elevador , quando percebeu a sanfona de metal sendo aberta. Ah sim! Era o homem do último andar, aquele cujo silêncio, até então, havia sido a tônica.

Subiram. No andar de Valentina o elevador parou dando o costumeiro tranco das máquinas ultrapassadas. Antes que ela pudesse descer, ele segurou seu braço com alguma força e perguntou, melhor, afirmou:
- esta noite quero que suba comigo ao sexto andar. Quero vencê-la com você.
- como?
- quero que gaste comigo esta noite.
- você me conhece de onde? Onde já nos cruzamos?
- daqui mesmo, do elevador. Há meses subimos juntos. Nunca ouviu meu silêncio?
- bem, mas pela ousadia da sua proposta, creio você certamente já ouviu falar dos meus serviços. E deve saber de minhas regras também. Não atendo aqui e não sou barata, nem amadora, isto pode lhe custar caro.
- você não entendeu. Não estou te propondo um negócio. E não sei ser posseiro. Será que tem medo de enxergar?
- enxergar o que cara pálida?
- que você, como toda mulher, pode ser uma puta, e que a quero minha puta?
- você só pode estar brincando.
- nunca falei tão sério.
Ela ainda tentou esboçar alguma frase, interrompida por um beijo de uma língua molhada, entrando atrevida com dente e tudo.
- apenas por esta noite se permita ser um puta, não tenha nenhuma outra intenção que não a de desfrutar de seus instintos junto comigo. Apenas renda-se a eles, por esta noite.

Pela primeira vez Valentina parecia soltou seus bichos e perdeu o controle da situação.Como tergiversar sobre seus instintos mais primitivos, agora soltos, se instintos não se explicam?

Um cheiro de cio inundando o ambiente e anulando qualquer outro cheiro. Entraram no apartamento dele e foderam a noite toda, entre gemidos, corações aos pulos, troca de frases obscenas sussurradas dentro do ouvido, termos chulos e descompassados, como convém aos bichos. Beijos indecentes, peles fundidas.
Acostumada a fazer sexo, desta vez era diferente. Não fazia sexo, nem fazia amor, que amor não se faz, se sente. Era entrega, era a primeira foda de toda sua vida. Despida de
medos, defesas e pudores, de tratativas financeiras ou qualquer outro compromisso, ela descobriu o gozo vindo do tesão indomável de cadela. Liberta, deixou-se usar como objeto maleável e manuseável, de todas as formas. Nada de compra ou venda; somente uma troca maravilhosa de cheiros, umidades, toques e gozos.

O dia quase amanhecendo, ambos exaustos. Uma única pergunta feita com palavras que faziam nexo:
- qual o seu nome?
- Valentina.
Dormiram enlaçados.

Já se passaram meses desde este dia. Ninguém sabe contar sobre o paradeiro de Valentina. Ninguém sabe dizer o que aconteceu depois. Nunca mais a viram depois da noite em que Valentina descobriu ser verdadeiramente uma puta. Porque há em cada mulher um puta que, mais cedo ou mais tarde, se revela pelas mãos de um louco libertino que não as amam com ressalvas. Que as desejam exatamente porque as sabem putas e com elas fodem. Fêmeas no cio, descabeladas, suadas, molhadas, transpiradas, mijadas e genuinamente belas. Mulheres que não são mesmo “flor que se cheire” mas que quem cheira não esquece e pede bis. “Marias sem vergonha” que mais cedo ou mais parte, por um momento mais ou menos breve, se sentem abençoadas. E começam a enxergar o mundo com todas as suas cores.

O homem do último andar também sumiu. Se estão juntos, em algum lugar, ninguém sabe, ninguém viu. Mas por certo, nenhum outro homem, exceto ele, saberia por que nome procurá-la neste mundão de meu Deus.

Ficamos torcendo, eu pelo menos, para que estejam juntos. E que Deus abençoe as putas, todas elas, todas nós.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

OS PASSOS (2)


Toc toc toc. Sobressaltou, morava ali há alguns meses e até então não havia percebido que morava alguém no andar de cima, devia ter se mudado no final de semana, enquanto ele viajava.

Toc toc

Eram saltos, com toda a certeza eram saltos. Era ágil, provavelmente uma jovem. Mais dois passos estaria exatamente sobre sua cabeça.
Afastou o pensamento e tentou se concentrar no texto que estava ditando ao computador.
“ Certamente…" - toc toc….

O texto se perdeu novamente entre os sons dos passos que ela provocava sob sua cabeça. Levantou-se, pegou o controle remoto, o noticiário. Mais uma vez os passos o desconcentraram.

Perdido em seu devaneiro, uma projeção. Talvez se subisse ao segundo andar e se apresentesse, talvez ela não se importasse. Era nova no prédio, talvez não tivesse companhia, só ouvia um tipo de passo no apartamento, o que indicava que viva sozinha. E assim divagando ouviu o “Bam” da porta. Estava saindo, suspirou arrancado de sua fantasia, resolveu terminar o texto que os passos haviam arrastado para outro lugar.

A batida da porta e os passos. Ansiou pelos passos o dia todo. “São exatamente dezenove hora e doze minutos” – Ela é pontual. – Se pegou analisando os movimentos dela, horas que chegava, para onde ia dentro da casa. Baseado nos movimentos criava o cotidiano dela, e no cotidiano dela passou a viver seu contidiano.

“Vou” – mas o que dizer? - E toda a coragem aos poucos foi se perdendo, se pegou mais uma vez sonhando, em convidá-la para beber algo, conversar, ter mais alguém. Mas e se ela somente aceitasse por pena, não suportaria tal idéia. Desistiu.

“São exatamente dezenove horas e quinze minutos” – Sentou-se e aguardou, cada minuto um suplicio, até que ouviu a batida da porta. Cinco passos e estava sob sua cabeça, caminhou mais um pouco, e outro som, música, sorriu, hoje ela tinha outro ânimo. Surpreso, percebeu outro som, sua voz acompanhando a música, algo mudara dentro dele, algo foi arrancado, a tranquilidade. “Entre por essa porta agora….. Você tem meia hora para mudar a minha vida...” – Doce, era isso, era doce.

Perdido em seus pensamentos ouviu a batida da porta. Um desespero tomou conta, era uma oportunidade, oportunidades não aparecem duas vezes para a mesma pessoa. Sentiu seus pés fincarem ao chão enquanto o tempo passava e sua covardia o prendia ali. Suava frio, tentando espantar o medo da rejeição pegou sua guia, correu até o elevador. Chegou no exato momento em que esse chega ao seu andar.

Aguardou a porta se abrir, o cheiro que saia dele entrava por suas narinas e o congelava por dentro. Num movimento rápido automático ela tocou no seu braço.
- Precisa de ajuda?
Esboçou um sorriso tentando disfarçar o medo.
-Não obrigado.
Hoje ela tinha cheiro, voz e toque. “Você tem meia hora para mudar a minha vida”, essa frase martelava sua cabeça.
Timidamente … quase inaldível, esboçou o seu desejo, cantarolou:
“Voce tem meia hora para mudar a minha vida.”

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"Reconstrução da personagem"

Aprendemos com Lispector que ser simples na escrita, dá um trabalho!!!
E o genial, J.P.Paes, nos diz em uma de suas maravilhosas aulas: “Na intuição entram as suas observações e experiências de leitor, de alguém que conhece palavras, frases, parágrafos, cenas, cenários etc. Que já leu críticas, resenhas, ensaios...”
E DÁ UM BELO EXEMPLO:
“Guimarães Rosa acentua em Carta de João Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana, na sua aparente, e só aparente, espontaneidade, cheia de técnicas e de conteúdos:”
"Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Conde, findava a fase de premeditação. Bastava agir. Então, passei horas dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, 'revelando' paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina estava pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, pela manhã”.
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Há divergências, controvérsias, opiniões (quanto: intuição, técnica, didática, disciplina...), mas precisaríamos de um outro Blog para discutirmos (Criação, Análise do discurso, Semiótica, Lingüística, Linguagem), além do próprio termo “opinião” (doxa), porém não é essa nossa proposta, a brincadeira aqui é outra, (rs) ,ainda que façamos uso desses e muitos outros recursos para nossa criação.

Dicas:
*O grau Zero da Escrita - Roland Barthes.
*Arquitetura da linguagem - Noam Chomsky
*Semiótica Aplicada - Lucia Santaella
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Penso que é possível “explorarmos” ainda mais as “belas personagens” que criaram. Uma Valentina, com sua doçura, romantismo e esperança, do texto “ESCOLHA NO ESCURO” de Veroca; um Carlos, com seu jeito doce, compreensivo, do texto “CERTAS OPORTUNIDADES” de Marinês; os personagens não identificados por nomes, mas nem por isso menos marcantes, fortes/determinados do texto “OS PASSOS” de Kátia.
Portanto, a proposta para esse 2º trabalho está diretamente ligada ao primeiro texto, ou seja, é partindo dele que construirão outra narrativa, mantendo, todavia, a essência, os fatos da história. A mudança se dará essencialmente na reconstrução da personagem.
Aí que entra a Técnica: Trazer para sua história as vozes de outros escritores que dialoguem com a sua voz.

Chega de blá blá blá.

PROPOSTA –DATA DA POSTAGEM - 16/11/2009
1- Escolher um escritor (conto, crônica) após a leitura /releitura/...
2-Mesclar “algumas características marcantes” da personagem do conto escolhido com a personagem que criou em seu texto
sueliaduan

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Certas oportunidades! MARINÊS


Alguém buzina lá fora, ele abre a porta da casa, tranca-a, despede-se do cão e entra no carro.- Oi mãe, tudo bem?- Sim filho e com você?- Tudo, também!-Carlos...- Ouça:-Hoje é seu primeiro dia no trabalho. Sinta-se seguro. Não tenha medo, você é o único “Cego” lá. Todos sabem. Sabem também que você mora sozinho que é totalmente dependente... um homem graduado. Sabem do seu valor e certamente isso se refletirá. É uma grande oportunidade!Deixo-o aqui. A partir do momento que cruzar aquele portão, seja o melhor. Você é sim, deficiente visual, nunca enxergou as cores da vida, a face das pessoas, nem de sua própria mãe. Sinto muito, apenas, por você não poder enxergar a beleza do teu rosto, do teu corpo, do teu ser. És tão lindo Carlos, inteligente.- "Iiii" mãe, chega de blá...blá...-Bom trabalho filho, boa sorte e até mais tarde. Faço questão de buscá-lo, pelo menos hoje deixe-me, a partir de amanhã prometo que não irei ficar de babá.Ao sair do carro, Carlos sentira um frio na barriga e um aperto no peito. Ele nunca havia trabalhado com carteira assinada e horário comercial, mas, sempre viveu como autônomo e da sua arte, arte de tocar, esse era seu maior orgulho. Dava aulas de violão em sua casa, além do talento de musico era também talentoso professor e com sua didática e carisma tirava o sustento e vivia bem. Fez faculdade de música, várias especializações tinha um belo curriculo, um repertório, apesar de ser jovem . Sabia também que aquele discurso todo da mãe era uma forma de encorajá-lo e de fazê-lo se sentir igual. Mas, ele tinha a nítida certeza que era diferente, era um deficiente visual, logo, isso denota “algumas” limitações. Ele não era hipócrita. Mesmo assim, já que estava ali tentou encorajar aquele forte Carlos da imaginação de sua mãe. Porém, só ele, só ele sabia o que tinha passado da fase do pré a Universidade. Ele sofreu bastante “preconceito” e sua mãe nunca, nunca viu as cenas mais humilhantes pelas quais ele tinha passado.Mas...isso é coisa do passado. Agora eles empregam deficientes, todos têm chance na sociedade. Ele não ia passar por aquelas cenas novamente. Adentrou o escritório. Levava certo tempo para adaptar-se aos locais e incorporar a demarcação dos móveis e objetos, porém, ninguém se importou com isso e a porta de vidro estava ali, logo, sem ajuda, sem visão, ele chocou-se com a porta e eis que se fez um riso em coro, muitos risos, ninguém o acudiu.Ao perceber que ninguém vinha buscá-lo, foi encostando-se e tentando chegar a algum lugar. Derrubou um vaso de plantas e fez-se novamente o riso em coro.Decidido! voltou à porta abriu ainda com certa dificuldade e ficou lá fora. O porteiro todo comovido veio em sua direção e perguntou se precisava de algo.- Sim. Preciso de dois favores: Ligue para minha mãe nesse telefone e diga para vir me buscar agora. O porteiro faz a ligação e em poucos minutos volta e pergunta, e o segundo favor?Carlos diz: - Avise, por favor, quando eu for embora ao Sr. Luís Medeiros que me demito desse emprego antes mesmo de começar.A mãe buzina... novamente, ele entra no carro, ela pergunta:- O que foi? Desistiu? Tão rápido? O que aconteceu?Ai mãe, você não disse que hoje fazia questão de me buscar. Eis me aqui!A mãe tenta lhe dar alguns sermões e se incomoda com a certa ironia. Ele coloca o braço para fora e tenta sentir o vento.-Chegamos filho. Posso entrar para conversarmos um pouco?- SimAbriu a porta de sua casa. Foi em direção a geladeira. Pegou uma cerveja e foi até o sofá onde estava o seu violão.Sentou-se e tocou sua sinfonia predileta. Isso era realmente bom de ouvir, não aqueles risos desafinados. Agora sim ele voltava a ouvir e porque não dizer a enxergar o mundo de acordo com suas escolhas.O cão late, o vento bate a janela e Carlos vai à busca de mais uma cerveja. Da cozinha grita:- E ai mamãe...mamãezinha... Vai uma cervejinha?Volta rindo e os dois caem na gargalhada, num riso...Ah! um riso bem gostoso de se ouvir e de se ver.
28 de Outubro de 2009 19:24



Escolha no escuro





Ela não havia nascido cega. Sei, o politicamente correto seria dizer “ deficiente visual”. Mas ela se sabia e se auto descrevia como cega mesmo. Porque a partir do seu ponto de vista, o que havia era a mais pura e absoluta escuridão. Eufemismos são a mais clara demonstração de que é impossível assumir a experiência existencial de outra pessoa. E esta sim, não pode ser minimizada.

Deficiente visual, ela  foi um dia, bem antes. Filha de pais que tinham retinose pigmentar e ainda por cima eram primos, seu destino foi traçado ali mesmo, no leito de sua  concepção. Nasceu com trinta por cento da visão e com um cronômetro acionado, dando-lhe mais uns quinze anos para desfrutar deste acréscimo de misericórdia divina.  Ou não. Seria melhor ter nascido cega, ou ir se tornando aos poucos? Após este tempo tudo se cumpriu e fez-se noite para ela.

Era uma pessoa bastante solitária.  Sem pais, sem irmãos, sem marido, morava sozinha. Seus olhos, embora não enxergassem, eram lindos. Sempre distantes, porque ausentes. Esbelta,  morena jambo, corpo bem desenhado.  Vaidosa, estava sempre impecável. Naquilo que precisava, pedia  emprestados os olhos de alguma amiga para ajuda-la na tarefa de se fazer bela aos olhos dos videntes. Não era rica, mas tinha a vida financeira organizada. Fez curso de massoterapia. Profissional séria e competente, tinha o suficiente  para garantir seu sustento.

Além disto, seus pais haviam lhe deixado como herança um pequeno apartamento, simples e bem localizado. Sabendo que a cegueira seria herdada por toda eventual prole, resolveram ter apenas uma única filha. Ela, por muito tempo se perguntou, não sem alguma revolta,  porque Deus havia escolhido  justo ela como  fruto desta onipotente arrogância de seus pais em procriarem. Viverem um amor improvável e proibido já não teria sido mais do que suficiente? Acabou se convencendo de que foi escolhida porque o universo sabia que ela daria conta de cumprir a sua sina. Seus pais também sabiam. Tanto que a batizaram com um nome que sugeria força e coragem.  Além disto,  brigar com Deus pra que?  Ele está no comando, até para os que não crêem nele. E, ao que parece, tem  prazer em testar, a todo momento, nossas resistências e nossos estômagos.

O prédio onde morava era daqueles antigos, lá pelos lados da Barra Funda. O bairro, depois da migração dos judeus para Higienópolis, era agora totalmente comercial, com alguns poucos imóveis residenciais decadentes. Valentina morava em um deles, bem antigo, de seis andares. O elevador era daqueles cuja cabine se fecha por uma porta sanfonada de metal. Valentina morava no penúltimo andar, vizinha de porta de dois homens, que também moravam sozinhos. Não sabia nada sobre eles. Uma cidade grande como São Paulo é apenas a soma de um monte de solidões. Mas fato é que, ambos estavam completamente encantados e interessados por ela.

Não era razoável pensar que fosse coincidência. Todo dia, quando ela chegava, depois de um dia exaustivo de trabalho, lá estava um deles, ou ambos. A capacidade do elevador era de quatro pessoas. E, de uns tempos para cá, ela nunca subia sozinha. Quando coincidia de os dois vizinhos de porta se  encontrarem, subiam os quatro.  Sim, porque havia um morador do último andar que,  todo dia, impreterivelmente, estava no hall à mesma hora que Valentina chegava. Com o tempo virou rotina: subiam em três; ela,  o  homem do último andar, e um dos seus vizinhos de porta. Estabeleceu-se, naturalmente, ou não, um rodízio entre eles. E o mesmo  era rigorosamente cumprido.

 Território demarcado, armas escolhidas, começou  um duelo pela conquista do coração de Valentina. Ambos pareciam ter uma fome de mais de mil anos, tentando arrebatá-la para si.

O vizinho da esquerda decidiu que iria conquistá-la pelo olfato. Sabia que os cheiros podem ser um convite ao pecado e chamam o sentido da gustação. Ainda mais seria assim  para quem não enxerga, intuiu. Estava sempre cheiroso, marcava sua presença pelo uso de uma deliciosa colônia que aprisionava os cheiros de relva. Parecia passar ventando perto das suas narinas, na esperança de despertar-lhe o apetite. Mas não parava por aí. De início deixava a porta de casa entreaberta e de lá insinuavam os mais exóticos cheiros. Perfumes adamascados e amadeirados. Com o tempo conseguiu fazer com que ela desse uma breve entradinha em seu apartamento para um dedo de prosa. E aí não economiza suas armas aromáticas. Vinham em seu socorro um arsenal de cheiros da cozinha, dos mais variados, dos mais apetitosos, convites à luxúria, bem mais que à gula. E assim, o andar se inundava de cheiros e sedução nos dias ímpares.

Já o vizinho da direita, ia à luta nos dias pares. E apostou em usar armas que a conquistassem pela audição. Sabia o quanto uma voz macia, segura e aveludada pode conseguir de uma mulher. Vivendo no escuro então, não haveria erros. Não é sem razão que ouvimos muitos dizerem que uma mulher é capaz de ir ao gozo guiada pelo que ouve. Deu à vida de Valentina uma trilha sonora, das mais cuidadas e sofisticadas. Um amante e estudioso da boa música, desde sempre,  tocava seu sax com maestria crescente. Também acabou conseguindo dela as mesmas visitas breves. Era então que passou a ler-lhe pequenos trechos de poesia, uma poesia encharcada de conteúdo elegantemente lascivo. E foi assim que, nos dias pares, o andar se enchia dos mais inebriantes e variados sons.

Valentina começou a gostar daquela situação. Nos dias ímpares deleitava seu olfato; nos pares sua audição. Ambos deixavam seus sentidos acesos, cada vez mais à flor da pele. E ela parecia a cada dia, mais viva e bonita como nunca. Mas sabia que não poderia prolongar por muito mais tempo aquela situação. Que teria de fazer uma escolha.

Este acordo tácito entre eles, esta rotina durou meses, até que um dia, ambos se atrasaram. Um tanto desapontada, Valentina preparou-se para subir o elevador sozinha.  Foi então que percebeu a sanfona de metal sendo aberta. Ah sim! Era o homem do último andar, aquele que ninguém notava, silencioso, desinteressado, que havia entrado na história até agora para completar a lotação do elevador.

Subiram. No andar de Valentina o elevador parou dando o costumeiro tranco das máquinas ultrapassadas. Mas, neste dia, o tranco, talvez calculado pelo destino, deixou um degrau entre a porta do elevador e o chão. Um degrau discreto, mas grande o suficiente para que ela tropeçasse. E foi aí que o homem, tentando segura-la antes que pudesse esborrachar no chão, lhe tocou. Um único toque. Sem cor, sem cheiro, sem fala. Seguro e suave o suficiente para se prolongar em uma carícia. Um toque na pele, no vácuo de todos os outros sentidos. Doce toque que a arrepiava e queimava sem arder. Toque capaz de despertar o gosto de um beijo roubado. Com cheiro de cio, inundando o ambiente e anulando qualquer outro cheiro. Toque capaz de se fazer seguir por gemidos, por latidos do coração aos pulos, por frases obscenas sussurradas dentro do ouvido, termos chulos e descompassados, como convém aos bichos.

Perderam-se num beijo, peles fundidas. O espaço entre os dois corpos fundiu-se e, de repente, a luz se fez. Uma luz que preencheu enfim todo o andar. Um luz que tinha cheiro, tinha gosto e que cantarolava, clareando a noite.
Não é pra menos que a pele é o maior órgão do corpo humano. Nela todos os sentidos se encontram e se perdem. E era exatamente nela que estava a porta que abria o caminho para o coração de Valentina.

A escolha estava feita. A cegueira curada. Todos os sentidos despertos, davam agora um  novo sentido à vida de Valentina.

Contaram- me que tudo continua mais ou menos igual naquele velho prédio. Exceto que ela  se mudou para o último andar, de onde saem sons e cheiros que inundam todo o prédio. Os vizinhos do quinto andar, seguem em sua rotina e com sorte, terão novidades pela vizinhança.  É que, na porta do meio agora tem uma placa onde se pode ler: “ Aluga-se” .





Os Passos

Os passos

Por Katia Mota



Toc-toc.
Toc-toc-toc. De um lado para outro.

-Vejamos bem, mulher. Assim o parece, som de saltos, o toc-toc é inconfundível. Jovem, não por que quisesse que fosse, mas pela agilidade do movimento.

- Baaa chega... tenho que trabalhar.

"Certamente, ao se deparar...." toc, toc, toc. O som mais uma vez, não conseguia se concentrar em ditar o texto à máquina, o som misturava-se ao som das palavras ditadas para o computador. Os sons eram o que mais se aproximavam da visão, ainda mais que os cheiros e o toque. Constituía uma cena baseada nos sons. Não conseguia e até o momento não havia colocado nada nele que induzisse a uma imagem de passos.

Levantou-se do micro, sentou-se frente à televisão a pretexto de distrair-se. Zapeando, mas sua cabeça insistia em criar cenas. Desligou e voltou a atenção aos passos.

Estava próxima à porta. Dois passos e silêncio. Da porta mais dois passos estava sob sua cabeça.

“São exatamente dezenove horas e vinte e dois minutos”.

- Então ela chega às dezenove e vinte.

“São exatamente dezenove horas e dez minutos”

Passou a aguardar.

A batida da porta. Pontual. O som era diferente, menos contundente, baixo. Dois passos. O tempo de espera e estava sob sua cabeça.

“São exatamente dezenove horas e doze minutos”

A porta.

Dois passos.

Sob sua cabeça.

Uma variante, música…Aguçou mais e podia identificar a música, e… A voz dela, alta e clara acompanhando ao aparelho.

“Entre por essa porta agora…. você tem meia hora para mudar a minha vida….”

Você tem meia hora… essas palavras martelaram e martelaram… Meia hora. Meia hora seriam o bastante para mudar uma vida, sem dúvidas. Perdido nesse pensamento esqueceu-se dos passos. Quando deu-se conta que os passos haviam mudado de timbre, a musica silenciado, mas a voz ainda à capela passeava pela casa, cruzava sua sala, passou sob sua cabeça e a batida da porta.

Apressado pegou a guia, tateou o caminho a até a porta e correu esperar o elevador descer e traze-la até ele.

Esperou à porta do elevador. Abriu-se e a voz da canção.

- Precisa de ajuda?

- Não obrigado.

O perfume.

Tinha som, cheiro e toque. Cantarolou.

“Você tem meia hora, para mudar a minha vida”

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Escrevinhadores,escreventes ,escritores ou o nome que se queira!

"Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho".
CLARICE LISPECTOR

Nesse primeiro encontro e, espero que tenhamos muitos...muitos ... muitos outros, a proposta é:

I- Elabore um texto em que o personagem :
a) é deficiente visual
b)-se vê diante de uma díficil escolha.
c)-mora sozinho.

II -Data da postagem - 28/10
É sempre importante traçar os perfis : físico e psicológico do personagem.

E mais uma vez Clarice Lispector nos ensina:
No Rio de Janeiro , captou no ar de relance o sentimento de uma moça nordestina, motivo para a criação de 'A hora da estrela"