quinta-feira, 24 de março de 2011

“Fantástico e Real - O Mundo de Murilo Rubião”

 
O mágico desencantado fascina multidões com poderes que ele não controla. Teleco, o coelhinho de olhos tristes que se transforma em outros animais, também é incapaz de conter o fluxo vertiginoso das metamorfoses. Bárbara, a mulher que não pára de engordar, faz pedidos cada vez mais extravagantes. Já o homem do boné cinzento emagrece (desaparece) misteriosamente.

Essas criaturas e situações estranhas fazem parte do universo do contista mineiro Murilo Rubião, considerado precursor e um dos principais representantes da literatura fantástica no Brasil. Sua arte comove ou faz rir? Maravilha ou angustia? Como classificar as narrativas, desse mágico? Elas já foram classificadas como kafkianas, surrealistas, míticas, simbólicas, absurdas...

São histórias construídas com tanta coerência que nos fazem duvidar das nossas certezas e da própria realidade. O importante não é decifrá-las como se fossem enigmas ou parábolas. Os símbolos possuem uma abrangência cósmica, incompreensível em sua suas infinitas significações

DATA DA POSTAGEM 08/04/2011

PROPOSTA


CRIAR UM MINICONTO

Leve em conta, na criação do miniconto, a magia, o surreal, a fantasia. Observe como isso acontece no conto de Murilo Rubião, AQUI .

segunda-feira, 21 de março de 2011

Sem meias palavras – Lau Siqueira



Para os poetas de sábado à noite
Antes de fechar a porta ainda ouviu sua filha dizer que era louca, onde já se viu sair num sábado chuvoso quase 7 horas da noite pra ir ao centro da cidade ouvir poesias. Não soube o que responder, não sabia quem não entendia quem. Não via nenhum empecilho a não ser a dor que estava sentindo na sola do pé. Isso era só um detalhe.  Faria um esforço além do normal para colocar os pés no chão. E outra, do metrô até a casa das rosas eram duas quadras. Havia assumido um compromisso. Havia dito que iria. Ainda ouviu sua filha dizendo: “Não sei onde arranja tanto pique”. Ela também não sabia. Sabia que somente um terremoto a impediria de seguir em sua decisão.
Ia não porque se sentisse na obrigação de ir. Ia porque era preciso conhecer a voz, o sorriso, os sentimentos que moviam os donos daquelas fotos em quadradinhos, homens e mulheres que carregam cheiros de flores e de poesia e na sua casa lhe fazem companhia de longe.
Chegou com a luz apagada e todos nos seus lugares. Quando as apresentações foram feitas pensou: se soubesse que era assim, que as pessoas se inscreviam e depois liam uma poesia, teria preparado uma, uma não, não sabia fazer poesia. Teria procurado nos livros uma já feita por alguém. Mas quem? Quem é o seu poeta? Não sabia. Na escada que dá acesso a biblioteca e aos banheiros, duas pessoas estavam esparramadas e pareciam que dormiam. Descobriu que não era só ela que sentia vontade de dormir quando estava ali na casa, outros também sentiam isso. Subiu os degraus com os olhos e pensou: Lá em cima quem será que lia o livro do desassossego de Fernando Pessoa?
Os poetas foram passando um a um. Ouvia as vozes enquanto pensava nesses seres estranhos vestidos como qualquer um. Sempre pensou que os poetas se vestiam de forma brilhante assim como a poesia que escreviam. Mas não, estavam ali todos de camiseta e talvez cheirando a suor, naftalina ou ainda ao sabão de uma roupa mal lavada. Ficou feliz por saber que estava de acordo, até no cheiro da roupa. Uma coisa não podia assim como eles: não podia sorrir.
Ouviu quando o poeta disse: Somos muitos, somos uma constelação... Mas estar juntos é difícil porque falta o mais importante para isso, as obrigações da vida que nos toma o tempo, os problemas que toda família tem, ou porque na maioria das vezes estamos sem dinheiro, ou doente, ou perdemos alguém na morte, ou alguém nos abandona e levamos um tempo enorme para nos recuperar.
Era noite de lua cheia, não que estivesse vendo, sabia disso porque alguém havia dito sobre ela no facebook. Olhou para a fisionomia de cada um, os olhos, as sobrancelhas, os cabelos, o físico, o sorriso, etc. Ah, se pudesse sorrir escancarado desse jeito! Disposta a classificar esse grupo percebeu com surpresa que eles se transformavam em outros a partir do momento que liam suas poesias. Escreveu na agenda alguma coisa que pensou ser importante. Mas que nada lhe serviram na hora de ganhar um livro. Quando terminou, um dos organizadores lhe deu a mão e agradeceu por estar ali. Pensou em ir cumprimentar Lau e Amador, até deu alguns passos e ensaiou algumas palavras só para descobrir que o silêncio que carrega dentro de si é maior que sua vontade. Desceu a escada e caminhou até o portão, sentiu vontade de virar o rosto e dar uma última olhada para vê-los reunidos na porta de entrada envoltos por uma nuvem de borda prateada. Logo mais iriam se reunir em algum café para beber um aperitivo e comunicarem suas observações. Pensava como seria enquanto seguia pela calçada molhada e vazia e a noite toda sonhou que na cidade há grandes festas e ela fora convidada. E no dia seguinte levantou contentíssima, e é assim que ela viaja.
Mlailin

quinta-feira, 17 de março de 2011

Perdidos & Achados


Desço rapidamente a rua. Sinto que meus pés mal tocam o chão. Levito? Isso são horas para ironias. O momento não é para piadas, ainda mais, de mau gosto. Coração acelerado aperto o passo. O suor já começou a escorrer. Um tremor percorre todo meu corpo já molhado. E se realmente perdi? Bem, se perdi posso achar. Como era que brincávamos, mesmo? _ São Longuinho, São Longuinho, se eu achar dou três pulinhos. Saudade da Rita, tão linda, e?  E nada, diacho. Malditos pensamentos, não me dão sossego, não paro de pensar. Será normal? Olha aí, cada passo um pensamento, um questionamento. Vai ver é assim com todo mundo. Deve ser.

À semana passada, aqui mesmo na ladeira, comecei observar às pessoas andando sozinhas. O olhar distante gestos rápidos, algumas até moviam os lábios numa animada conversa chegando até a sorrir. Talvez estivessem a recordar uma situação passageira que eu, em minha observação, captei. Só isso. Mas comigo penso que é diferente. Meu vôo vai longe como dizia mãe: _Voando menino. Cuidado que pode cair, hem? Mulher boa, a mãe, lembro de seus cabelos negros caídos sobre os ombros, a voz macia, o andar ligeiro, pronta pro trabalho. Sempre fingindo não ver Rita e eu, escondidinhos, lá no milharal trocando beijos. Gostava de olhar. Era com ternura que espionava a gente. O quê que deu em mim agora? Que nostalgia é essa.? O que está acontecendo comigo? Preciso me concentrar, relembrar o trajeto feito. Como o trajeto feito? Sempre subo a 42. Será que mudei todo o trajeto e nem percebi? Como vou saber as ruas que andei? E se andei a esmo? O que é isso agora, delírio? Com andei a esmo? Basta. Não ouço mais essa maldita voz. Estou ou não no comando? Exijo de mim concentração, parar de tagarelar, silenciar esses ruídos interiores.

Os orientais dizem que os amantes nada dizem por que no seu silêncio mora um mundo, uma imagem imobilizada num momento eterno. Então a Rita nunca me amou. Como falava. Juras de amor sussurradas aos meus ouvidos, os lábios a roçar-me o pescoço, os beijos ardentes, tudo tão forte, tão intenso. Que bom que era ouvir sua voz, principalmente, quando me chamava: _Titooo, Titooo, Vamos. Não gosto de chegar com as luzes apagadas. Íamos toda terça na sessão das quatro, único dia da semana que passava bons filmes. Rita ficou encantada com “Passagem para a Índia”, não parava de falar, dias depois ainda comentava as cenas mais marcantes, as mais belas falas dos personagens. Seus olhos ficavam cheios d’ água, à voz embarcada. Outro que a impressionou: “O Desaparecimento de Lorca”, com Andy Garcia no papel de Frederico Garcia Lorca. Este sim, mexeu com ela e, quando Andy Garcia/Lorca com terno branco, chapéu cinza, gravata vermelha, desceu magistralmente às escadas, chorou copiosamente. Sabia os poemas.

Ouvi baixinho, Rita, declamando Lorca. Que emoção. Engraçado, só hoje percebo que Rita pronunciava meu nome acentuando o “o” do Tito. Como se estivesse cantando. Será que ela queria ser cantora? Quanta se perdeu da Rita, em mim, com o tempo? E o que eu nem cheguei a conhecer. Rita pintava, nunca mostrou - me seus quadros. Também a gente nunca falou de cores. Falávamos de tudo, das ondas do mar, das mais variadas espécimes animais e vegetais com seus caminhos rochosos, desertos, coníferas, dálias, girassóis, begônias, folhas das macaúbas, do canto de um rouxinol, do arganaz-do-campo, dos olhares, dos caminhos dos descaminhos. Cores nunca. Só depois do acontecido é que soube, até guardei um quadro de lembrança. Vai ver pintava declamando Lorca. Quer dizer então, que eu vou ficar aqui descendo e subindo a ladeira, relembrando perdas?

Lembrar-me da Rita, recordar seu jeito doce dói e, o fato não resolvido, martela na minha cabeça, A própria polícia não soube explicar. Quanta coisa se perde nesta vida, ou não. Quantos encontros. O que é que realmente fica em nós? Uma moringa de barro, um cesto de vime, uma chaleira de estanho,uma garrafa de vinho, toalhas brancas com dobras bem marcadas dos finos restaurantes, um guardanapo amarrotado, o tecido colorido do papel de parede, a superfície nua da mesa de madeira, os aromas, os cheiros das ruas, das casas, a morte de Rita, o documento perdido. O vento empurra a manhã silenciosa, profusão de coisas acontecidas, infinitas manhãs.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Pessoas Descartáveis


A tendência de moda hoje são as Pessoas Virtualmente Descartáveis.
As Pessoas Virtualmente Descartáveis são itens indispensáveis no nosso corrido dia-a-dia. Se você tem intenção de possuir uma Pessoa Virtualmente Descartável verifique direitinho porquê as melhores são aquelas que vem com os itens: Orkut, Msn, Email, Google Talk, Skype, twitter, Facebook, Buzz, ID, IP, Login, Senha, Avatar e etc.

Algumas também possuem acessórios como Blogs e Sites. As Pessoas Virtualmente Descartáveis são dotadas de incrível memória ram, web cam de alta definição, monitor LCD, Gravador de DVD, teclado, mouse, Scanner, Modem, Bluetooth, pendrive e dependendo do nipe físico tem mais umas coisinhas.

Para possuir uma Pessoa Virtualmente Descartável não precisa obrigatóriamente de Feeling, basta clicar no botão Add e em alguns casos confirmar.
Outra particularidade desse produto é que não necessariamente o usuário tem a obrigação de falar com ela, se você estiver enjoado da pessoa, sem tempo, sem disposição ou sem paciência para esta, basta conectar com status OffLine e não causará nenhum inconveniênte. E quando quiser novamente falar com a Pessoa Virtualmente Descartável basta entrar com o Status OnLine e ter uma desculpa qualquer para a ausência, pois a função dela não é esperar.
Quando o usuário sentir que há um grau de afinidade com essa Pessoa Virtualmente Descartável basta classificá-la com uma estrela como Favorita.

Vejamos as diferenças com o antigo modelo Pessoas Humanamente Descartáveis que alguns ainda conservam um ou dois exemplares por saudosismo.
Pessoas Humanamente Descartáveis estão presente no nosso dia-a-dia devido a condição Sócio-enonômica do país. E grande maioria das famílias conservam 1 ou mais exemplares.
Esses produto possuem fisicamente cabeça, tronco e membros. Elas ainda insistem para que o usuário ligue de vez em quando para dizer como está, são dotadas de um sentimento pré-histórico de carinho por Pessoas Humanamente Descartáveis, Pessoas Virtualmente Descartáveis e por incrível que pareça também por animais.
As Pessoas Humanamente Descartáveis tomam muito tempo com conversas olho no olho, exigem fidelidade e sinceridade, se preocupam, choram, ficam tristes por ausências, algumas vezes se magoam, sentem necessidade de toque, palavras de apoio, de se sentirem queridas entre outras coisas que demandam tempo. A maior desvantagem de possuir uma Pessoa Humanamente Descatável é o momento do descarte, esse momento na grande maioria das vezes é adiado por ser uma situação muito desagradável e causa um certo desgaste para ambas as partes, o que não acontece ao adquirir uma Pessoa Virtualmente Descartável. Basta um clique e pronto "DELETE".

No mais, tudo em paz!

O Embaraçado

Lá estão as cidades: grandes bichos mal cuidados. Em épocas de chuvas, regorgitam pus e excrementos. Alguns homens pilotam barcos improvisados, outros morrem. Aqui não é para tanto, assim se diz, não, nem tanto. Mas as feridas que nunca se curam denunciam certas indulgências silenciosas que poderiam causar essas mesmas doenças incuráveis ou catástrofes. O lixo não reciclado, os condomínios cercando universos paralelos, as filas acumuladas em supermercados e planos de saúde, os engarrafamentos.

A população não notaria, a não ser que lhe atrapalhasse a hora do almoço, ou da janta. Não que a população seja estúpida, de fato, as indulgências são silenciosas e mesmo que houvesse um silêncio próprio para se ouvir seus ruídos, ainda seria necessário silenciar a voz da própria vida a clamar seus cuidados circulares... E a voz da própria vida, ai, essa quando se cala?  

**************

A voz da própria vida da repórter do jornal local calou-se: havia qualquer coisa de errado: como um déjà vu. Agora ela crescia a pupila dos olhos para focar melhor o enorme buraco - prostrado no meio de uma avenida pouco movimentada - que acabara de engolir seu carro. Era como se o veículo tivesse sido calmamente espetado em diagonal no asfato. Com rápidos cálculos mentais ela pode entender que, ao parar para fazer o retorno, houvera tempo suficiente para que o carro simplesmente afundasse o focinho no asfalto, como se ali fosse areia movediça.

Foi o hábito de fazer sempre o mesmo trajeto até o trabalho - 5 anos só como âncora - que deu pistas à repórter: eram sempre os mesmos buracos, e além deles deviam pipocar outros e mais outros que talvez estivessem se unindo sob o asfalto para, dentro em breve, engolir a cidade, esse grande bicho mal cuidado.

Estavam por todos os lados, dos que já sabia, soube, até então, desviar-se com maestria, mesmo depois de dez dias de chuvas quase ininterrúpitas, e também por isso ela estranhara que o mais incômodo de todos os buracos - o buraco do retorno - não houvesse aparecido ainda. Agora ela podia entender que os curativos mal feitos dos anos anteriores haviam resultado naquele quase cômico acidente: pois não é que o carro afundara no asfalto? E o próprio carro próprio da jornalista! Que boa pauta!

Convidou o vereador responsável pela conhecida “Operação Tapa-Buracos” para uma entrevista a ser transmitida na hora do almoço (somente neste ponto eu passei a acompanhar de fato a história toda, por coincidência de ter me sentado no sofá àquela hora). A jornalista, que costumava encarar com bom humor os acessos artísticos da maquiadora da emissora, ganhou desta, ares maquiavélicos ao ter sua sobrancelha loira escurecida de marrom claro. Outrossim, o outro âncora arqueava a sobrancelha como quem tivesse perdido muitas rodas para os buracos da cidade e, talvez pela primeira vez em sua carreira, não esboçara um sequer sorriso para o entrevistado (o primeiro, único e último sorriso só apareceria no final da entrevista).

Antes, enquanto era veiculada a reportagem sobre as dezenas de buracos que estavam impedindo o acesso aos bairros mais afastados, além de outros perigosos buracos nas arteriais da cidade e etc, o vereador se atrasava por causa do trânsito e, quando finalmente se sentou na bancada do jornal, já era hora de responder às perguntas.

Ele usava uma roupa das mais comuns, bege muito claro, foi seu primeiro erro. Como não se podia encontrar nenhum detalhe extravagante e interessante para concentrar-se, rir e comentar, porque tudo era tão blasé, inesperadamente, a cidade inteira pareceu se calar para ouvir aquela entrevista (sentada no sofá em frente à televisão, eu parei de mastigar por uns segundos e pude ouvir o silêncio até mesmo daqueles que só conseguem se preocupar com a própria vida. Só se ouvia à televisão).

Logo no cumprimento, o vereador tinha sentido suas bochechas corarem e um fio de suor correr-lhe o centro do peito.  Aquilo era recente, logo ele, que de tão convicto convencera sempre fácil pais, professores, namoradas, eleitores, um verdadeiro talento. Agora - e não conseguia entender por quê - sentia seu estômago liberar bolhas que pressionavam, ao contrário, suas amígdalas e, ele tinha medo de arrotar no microfone.

Começou explicando, em tom de comercial de sukita, o que era a Operação Tapa-Buracos: não convenceu, sentiu uma gota na têmpora, sabia, não convenceu. A repórter aproveitou-se da gota na têmpora como alguém que já encontrasse a presa agonizando: primeiro, pôs o vereador à par de toda a situação de sua própria experiência de sua própria vida de seu próprio carro sendo engolido por um buraco que se repetia ano após ano, sendo sempre remendado às pressas nas estações chuvosas. A operação não teria provado ser ineficiente, sr. vereador? (Eu decididamente parei de mastigar, e até mesmo doze crianças da cidade pararam imediatamente seus afazeres para ouvir a resposta do vereador.)

Mas aí sim algo extravagante e interessante começou a colorir a tela televisiva desviando a atenção da população que, por isso, deixou de ouvir as palavras do político para então estudar-lhe cuidadosamente feições e gestos. Ainda não se dizia nada, o silêncio era preciso. As mãos do vereador tremiam e sua boca, visivelmente esbranquiçada, era como a boca de alguém que atravessasse o deserto.

Dava respostas infantis, não temos tempo, temos que agir rapidamente. Por que não agem no inverno, sr. vereador? No inverno não conseguimos detectar a localização dos buracos. Em épocas de chuvas, os curativos não têm tempo para secar e, de qualquer maneira, aplica-se a segunda camada de piche, como band-aids sobre camadas de pele apodrecida, não, não, para isso não há solução.

A população entendia a falácia, ou era possível que o homem estivesse esbarrando em um dilema desses à essa altura do campeonato? A população entendia a falácia. O que não se entendia, era como o vereador, um sujeito com tamanha cara-de-pau, podia parecer estar (como quem estivesse pela primeira vez na vida) embaraçado.

Ele gaguejava, se queixava do tempo, das muitas demandas. Ainda que costumasse se fartar de feijoada, dormir logo depois e nunca sentir nem mesmo azia, em certo momento da entrevista, sentiu o ácido estomacal alcançar suas amígdalas, tossiu, tossiu, tossiu, tossiu, tossiu, seus olhos se encheram d’água, não conseguia para de tossir. O outro âncora sorriu muito satisfeito com o engasgo do vereador e encerrou o jornal ao som do homem se estrebuchando em soluços.

Não se sabe se aquele pequeno momento à hora do almoço (daquela quarta) no qual a população sentou-se para para prestar atenção às questões da própria cidade, e viu nela um bicho mal cuidado... Não se sabe se aquela atenção dada foi diferente, cuidadosa, silenciosa, de quem parou para ouvir o absurdo e se indignar, não se sabe... não se sabe se o olhar indignado da população mirando a tela da TV foi o que causou no vereador, pela primeira vez em sua vida, os voluptuosos sofrimentos carnais de quem sente culpa. 

A população não sentiu qualquer compaixão pelo infeliz ensopado em suor e mentiras, antes, sentiu uma espécie de catarse semelhante à que se sente quando se mata uma barata ou um rato (ou, pelo menos o que eu senti: se parecia com uma catarse que sinto, misturada com nojo, quando mato uma barata ou um rato). Mas não se sabe...

... O que se sabe, é que o vereador não largou a política depois do episódio, e que, um ano depois, os buracos continuam a pipocar aos montes nas temporadas chuvosas. Ou seja, provavelmente, essa história toda foi inventada e, o que o vereador sentiu de fato, foi o efeito acumulado de muitos anos fartando-se de feijoadas para, em seguida, mergulhar em suas recorrentes e tranquilas sonecas - ainda mais tranquilas e rejuvenescedoras, quando embaladas pelo barulhinho das chuvas de verão. Ai, a voz da vida a clamar seus cuidados circulares! Essa, quando se cala?

O Poeta e a Lavadeira


Neste momento, numa rodada de amigos e admiradores, o poeta declamava o mais belo poema, uma obra prima. Foi um assombro... A poesia estava deixando todos extasiados! Que beleza!

Eram idéia profundas, as palavras, as frases tão suaves e arrebatadoras que os ouvintes estavam estupefatos e estáticos. Ninguém se mexia . Atenção total. E quando o poeta, no auge do entusiasmo, declamava a mais grandiosa estrofe do estupendo poema, ouviu-se uma batida na porta da sala. O poeta inspirado elevou o tom da voz, e de forma mais vibrante tentava abafar o ruído do inoportuno visitante.

Persistem, porém, na porta, as batidas indiscretas. Contrariado pela interrupção o poeta de uma forma intempestiva abre a porta violentamente. “ Por favor Sr. Poeta, a sua roupa suja! ___ diz um vozinha tímida, saída dos lábios de uma menininha magricela. Era a filha da pobre lavadeira. “ Agora não posso menina!... venha amanhã!” . “ Mas... a mãe fica sem serviço... e sem pão... somos tão pobres... por favor, Sr. Poeta, sua roupa suja”. “ Não posso, já disse!... E de forma estúpida e grosseira fecha a porta na cara da menina.

E, retornando o poeta, recomeça a declamar. Entre aplausos e ovações termina de forma gloriosa. Felicitações, abraços, sorrisos, elogios. Alta madrugada, surge o rosto pálido e faminto de uma menina paupérrima. Corre os olhos sonolentos pelo quarto, apanha da mesa os originais do poema e rasga-o em mil pedaços jogando-os no cesto de papéis, murmurando, “ Roupa suja” . E desaparece.

O poeta acorda assustado. Procura pelos originais! Estão intactos... começa a refletir! Será verdade que escrevi este poema? Um poema que fala de humildade, amor ao próximo, caridade, desapego das coisas materiais, enfim palavras enaltecedoras da condição humana . Se é verdade por que não entreguei à pobre menina a minha roupa suja? Por que preferi ao invés disso alimentar o meu ego e a minha vaidade?

Levantou-se, mesmo tarde da noite, atravessou metade da cidade e foi entregar a roupa suja na favela onde morava a lavadeira... e lavou com lágrimas de arrependimento a “ roupa suja” que tinha dentro da alma . Agora assim, seu coração declamou, em silêncio, o mais lindo poema da humildade.

terça-feira, 15 de março de 2011

A arte se Simpatizar

imagem Google












Tenho comigo a convicção, de que das emoções que vivemos, a simpatia é uma das mais interessantes, pelo fato de nos colocar na vida de outras pessoas numa maneira meio que natural desprovida de outras emoções, que senão a de se achar bem e sentir que esta fazendo bem. Há certa magia neste sentimento, que às vezes nem temos como explicar, é simpatiza e pronto. Ali se cria um laço com suas amarras feitas numa relação de troca de amabilidades, sinceridades e cooperação.
Numa ampla visão simpatizamos com coisas, pessoas, cidades, partidos políticos, animais enfim uma enormidade de situações, nas quais nos surpreendemos usando o termo simpatia. Não é raro ouvirmos as pessoas dizerem que não se simpatizam com alguém por este ou aquele motivo, ainda que não se expliquem ou justifiquem. Mas é assim, basta que você não goste de alguém ou algo, que a palavra simpatia vem logo à tona para auxiliar num sentimento, que evitamos assumir. Assim usamos a palavra que assume a condição de eufemismo, para nossa comodidade.

Um bom exemplo são os blogs, onde a gente vai criando um laço de simpatias seja pelo comentário ou mesmo pela arte de cada um se posicionar. E nesta evolução de simpatia, nos surpreendemos na mais linda maneira de comunicar com pessoas de todos os cantos do Brasil, e numa espécie de link ativo vamos simpatizando com pessoas, que são simpáticas daquelas que nos são simpáticas criando uma rede de simpatia, que fazemos das tripas coração para que este link nunca seja quebrado, nos permitindo sempre a conexão direta com estas pessoas. E confesso que assim ficamos cativos a estas pessoas e suas criações, não se permitindo deixar de passar na pagina, nem que seja para uma espiadela, ou mesmo para deixar uma marca carinhosa.  

Isto me faz lembrar uma declamação da cantora Bethania em seu disco Drama do 3° Ato de 1973 onde ela belamente declama Fernando Pessoa:

"Eu quero ser sempre aquilo/Com quem eu simpatizo/E eu torno-me sempre/Mais cedo ou mais tarde/Aquilo com quem eu simpatizo/E eu simpatizo com tudo/São simpáticos os homens superiores/Porque são superiores/E são simpáticos os homens inferiores/Porque são superiores também/Porque ser inferior é diferente de ser superior/E isso é uma superioridade/A certos momentos de visão/Eu simpatizo com alguns homens/Pelas suas qualidades de caráter/Com outros eu simpatizo/Pela falta dessas mesmas qualidades/E com outros ainda eu simpatizo por simpatizar com eles/Como eu sou rei/Absoluto na minha simpatia/Basta que ela exista/Para que tenha razão de ser.” 

Assim como esta beleza de criação do Pessoa, podemos nos sentir absolutos com nossos sentimentos com relação às pessoas que fazem nossos dias mais iluminados pela paz com momentos de puro prazer num perfeito equilíbrio de nossas emoções. Bem como não entendemos como algumas pessoas fazem questão de serem antipáticas, seja por se acharem a ultima cocada do tabuleiro, ou mesmo por se sentirem superiores ou mesmo grávidas de rei na barriga, enfim a gente sempre sonha com um mundo onde todos se harmonizem numa verdadeira cadeia de carinho, onde cada um possa estar envolvido na promoção da felicidade e do bem estar geral.

Um mundo de gente que se doa, que reparte que faça arte na parte de um projeto imenso de fazer deste viver um ato de amor entre pessoas e todas as coisas do universo em perfeita harmonia com a natureza e que sejamos todos felizes.



Toninho.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Pratos quentes e frios.





Nada mais honesto e generoso em matéria de comida que um bistrô francês: pequeno restaurante que serve comida caseira, tudo muito simples, da comida ao serviço. O menu em geral sugere o "plat du jour". Sim, porque em bistrôs muitas vezes é o "patron" que escolhe o que você irá comer e beber. Mas será sempre uma oferta honesta, em quantidades surpreendentemente generosas para o padrão europeu. Tudo isto acompanhado de uma baguete e um bom vinho.

O bistrô é uma festa para os sentidos, todos eles. Não chega a ser uma orgia de comida, a que vemos no Brasil em "buffets" e rodízios. Mas também não é aquela coisa indigente e pretensiosa da "nouvelle cuisine".
Saímos satisfeitos e nos fartamos com a comida de um bistrô. Diria que lá pecamos mais por luxúria do que por gula; também entre os pecados tenho os meus prediletos.
Se há um lugar no mundo onde é bom estar só, este lugar é Paris. Nossas reflexões são ambientadas em cenários adequados, mais que isto, perfeitos. Hoje, por exemplo, enquanto eu degustava meu prato – uma salada de escarola com bacon crocante seguido de uma galinha da angola ensopada com batatas – pensava no restaurante de "comida a quilo" onde almoço quase todos os dias. Um lugar bom, limpo, comida gostosa. Mas pensava exatamente na arte de saber escolher, entre tantas ofertas, um prato que seja saboroso e ao mesmo tempo nos convenha comer. É uma arte aprender comer nestes "buffets". Em rodízios então, nem se fala: bota arte nisto!

Ontem fui a um bistrô e devorei aquela galinha honestíssima preparada com cuidado. Lembrei-me de uma frase muito , muito comum de pronunciarmos ou ouvirmos: "a vingança é um prato que se come frio".

 Parece que esta cidade tem o poder de trazer à tona o melhor de mim e lavar todo o resto. Na paz daquele pequeno bistrô, na margem esquerda do Sena, já com uma meia jarra de vinho a me aquecer, eu imaginei uma cena e um diálogo. O cenário, o restaurante onde almoço todo dia. O diálogo entre eu e a Josie, a menina que fica dando suporte ao serviço:
 - Josie, que prato é este?
- Este gelado? É a vingança.
- E é bom?
- Tem boa saída, isto eu garanto. Mas é bem pesado. Prova!
- Ah não Josie, vou preferir aquela galinha ali, com batatas, me parece bem gostosa.

No leque de emoções que nos são oferecidas, sempre podemos optar. Há sempre escolhas mais saborosas, mais leves, mais inteligentes. Repetidas vezes ouvimos que a "vingança é um prato que se come frio"; o que raramente pensamos é que come-lo ou não é opcional.

Hoje paguei doze euros por este almoço, incluindo uma jarra de vinho da casa, um Beaujolais simples, mas ainda assim, francês. O pão e a água incluídos. Também um pedaço de torta de maçã com creme de cortesia – sim, não é verdade que franceses são atavicamente descorteses, especialmente se você não chegar falando com eles em inglês.
Na saída um sorriso agradecido à vida e ao pessoal de lá por este momento delicioso em minhas férias. Quando me despedi da mocinha que abriu a porta para que eu saísse, me descobri possuída por Baco. Juro que eu vi a Josie me perguntando em francês algo como:
 - Ficou satisfeita?
- Muito, uma delícia tudo.
- Comeu da vingança?
- Não, prefiro pratos quentes. Tenho dentes sensíveis.

(Olhei ainda prá trás e juro, Josie me deu uma piscadinha e um sorriso cúmplice.)

Saí errante pela cidade novamente e rindo sozinha. Paris é cidade prá andarilhos errantes, andando "errante ou erradamente"não há como não acertar em algo bonito de se ver.
O cenário de hoje foi Paris, mas podia ser São Paulo, Minas, qualquer lugar... A paz é minha, cuido pra que esta me acompanhe sempre. Viver em paz é viver bem.

Não é que me lembrei agora de uma frase sobre vingança muito melhor que este já tão bisado "clichê".... e não é que esta parece mesmo fazer bem mais sentido?

Minha vingança é viver bem!

Os mortos contam a sua história

         

              Domingo dia 13 de fevereiro. Olhei para fora da janela, parara de chover e era evidente que o dia ficaria nublado. Havia despertado com uma sensação de peso atrás da cabeça, parecia também estar com o coração oprimido como se estivesse num mundo sombrio vivendo num castelo gótico esfarelando-se. Tudo começou durante a noite quando tive dois sonhos que me deixaram com o corpo gelado, uma sensação de pânico o coração batendo mais forte. Pensei em levantar e anotar em minha agenda, mas o peso do corpo me fez ficar na cama. Uma sensação ruim percorria minhas veias e parecia não ter fim. Levantei assim que o dia nasceu e comecei a pensar no primeiro sonho. Havia sonhado com o filho da minha vizinha um homem viciado em drogas e ex-presidiario. Sempre que ele me vê na rua arruma um jeito de se aproximar e dar algum tipo de cantada. Educadamente tiro o corpo fora me fazendo de desentendida. No sonho ele se aproximou de mim falou alguma coisa que não lembro mais e vi o seu desejo ser transferido para um dos dois companheiros que o acompanham, e esse com um revolver na mão segue em minha direção e foi ai que começou uma angustiante fuga. No segundo sonho, sonhei com minha mãe morta há dez anos. Ela estava no quarto que construiu nos fundos da casa que hoje vivo. Conversávamos alguma coisa ao mesmo tempo em que a minha mente dizia: “Minha mãe esta morta e isso é um sonho”. Um sonho que avançava para a minha adolescência me levando para alguma coisa que eu não sabia o quê. Depois quando levantei, segui meus afazeres movida a angústia. Mais que depressa corri a procura de um chá e estourei minha cartela de remédios, eles iriam me ajudar. Mas desta vez foi tudo inútil. A coisa continuava comigo. 
           Era como se a minha vida estivesse parada. E que vida era essa que eu vivia?  Se é isso que chamam de tristeza profunda, de onde ela vem? E por que vem? Senti vontade de chorar. Não suportando mais, meus olhos encheram-se de lágrimas e abaixando a cabeça disse a mim mesma: “Por que eu não posso sentir escrever e suportar?”. No céu as nuvens pareciam ter muita pressa e foi na rodovia Raposo Tavares que tudo ficou cinza da cor do asfalto. Era como se aquela estrada quisesse me dizer alguma coisa, mostrando a dor horrivelmente brutal a que foi submetido alguém. Encostei a cabeça no vidro do ônibus enquanto sentia meu corpo se juntando em dois e eu perguntando: quando isso iria acabar? Teria que parar de pensar nisso, porque logo mais estaria indo para Vargem Grande Paulista.
          Cheguei cedo. O ritmo do meu passo era medido, contado e pesado. Diante de mim uma contínua procissão de homens e mulheres. Estava ali de pé, olhando isso sem nenhuma alegria quando decidi ir lá fora olhar o parque, as árvores as flores, deitar na grama. Talvez isso ajudasse. E foi o que fiz. Deitei na grama com receio de que alguém viesse e dissesse que era proibido ficar ali. Ninguém veio e eu fiquei longo tempo esparramada, esperando algo, alguma coisa que tirasse a angústia, o bolo que parou dentro do meu corpo no meio do meu peito.
          Duas palavras pairavam acima de mim: impossível, terrível... Agora eu estou aqui viva e respirando e você está debaixo da terra. A morte ainda não despiu os seus ossos e o seu sangue está molhando a grama. Faço uma pausa para que venha a resposta. Escuto um silêncio quebrado somente pela minha respiração. E quase no mesmo instante repeti as palavras lidas no livro sagrado: “Da terra o sangue do seu irmão esta gritando por mim, pedindo vingança”.
          Foi na manhã seguinte que a coisa revelou-se. “Vanessa Duarte, 25 anos foi achada morta com sinal de violência sexual em Vargem Grande Paulista. Segundo a polícia o assassino deve ser conhecido da vítima...”
Mlailin




domingo, 13 de março de 2011

Artificial


Esperando em um Shopping, fiquei pensando na artificialidade do ambiente: Luz, ar, pessoas querendo mostrar o que não são. Conversas vazias, artificiais, roupas que escondem o verdadeiro formato do corpo, maquiagem que oculta as linhas de expressão. Emoções verdadeiras sufocadas por uma falsa felicidade.
Percebi o quanto faz falta ser natural, tomar o vento no rosto, sentir o Sol, pôr os pés na terra, dizer algumas verdades para quem precisa ouvir.
Sociedade artificial essa a nossa, hein? Torna-nos máquinas, com a finalidade de produzir e cumprir metas, e ainda por cima, temos que estar familiarizados com todas as novidades do mundo, sabendo de tudo da vida de todos, pois também vivemos a artificialidade na Internet, reflexo de nossas vidas artificiais.
Pressão demais para pobres mortais, que não podemos estar acima do peso, mas somos bombardeados com alimentos calóricos, não podemos ter cabelos brancos, mas o stress nos envelhece dia a dia. Enfim, só sendo artificial mesmo para sobrevivermos a essa sociedade de bonecos.

De Carina Cardoso

sexta-feira, 4 de março de 2011

"Fruto da persistência e do esforço humano"


Uma das questões fundamentais da arte da ficção – talvez a maior delas - é a percepção da importância do exercício, ou seja, da prática sistemática de exercícios, pois essa atitude conduz à capacitação e à vontade de praticar mais e mais, num círculo virtuoso de aprendizado e amadurecimento.

É sempre bom relembrarmos o significado da palavra exercício: — "perseguir, "obrar", "não dar folga", do latim “exercere”. Escrever é fruto da persistência e do esforço humano.


DA POSTAGEM 18/03/2011

PROPOSTA


Escrever uma crônica
Você pode optar:

1- Final feliz
2- Final infeliz
3- Final em aberto, ou seja, o enredo fica “no ar” em suspenso.