quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Memórias de um sótão.


Imagem Google










Na volta do cemitério, vovô subiu uma última vez ao sótão, só o tempo de tirar uma caixa de sapatos que, ao descer, entregou a mamãe com algumas palavras de explicação. Dentro havia fotografias, cartões-postais, cartas, um broche e dois cadernos. A letra do mais estragado deles, caprichada no começo ia piorando a medida que se viravam as páginas, até ficar no fim quase ilegível, algumas notas arremessadas que se diluíam no branco das últimas folhas virgens

Um apito solto no ar.

Passado alguns anos, numa manhã de Agosto, acordei mais cedo e preparava meu café, quando ouvi um barulho vindo do sótão. Pensando se tratar de algum gato, fiz um chamado tradicional bichim... bichim. , mas como resposta, apenas risos do meu pai, saindo do sótão com uma caixa de sapato escurecida pela fumaça do fogão à lenha da casa. Após lhe pedir a benção como tradição mineira, quis saber, por que ele tinha ido ao sótão naquela hora do dia. Mas ele apenas falou que estava à procura de uns papeis antigos. Tomamos café juntos e cada um foi para sua rotina.

Durante o dia no escritório, lembrava da manhã com meu pai saindo do sótão, e pensava como velho tem manias, que a gente nunca entende. Aquilo ficou martelando na minha mente, pois fazia tempo que ele não subia por lá. Quando voltei do trabalho, minha mãe relatou que o pai passou varias horas no quintal, remexendo na caixa velha de sapato e que ela vez ou outra, ouvia um apito vindo do quintal, mas que não identificava e ele sempre afirmava, não ter ouvido nada e que ela minha mãe, deveria estar ficando maluca.

No dia seguinte uma ligação urgente vinda de minha residência, o que me preocupou, vez que isto não era comum na família. Rapidamente segui para a sala e ao ouvir a voz de minha mãe, senti que algo não estava bem, em meio a um choro ela dizia, que o pai tinha saído de casa após minha saída, que tinha tirado algo da tal caixa e que não tinha voltado para o almoço como de costume. Sai pelas ruas com a cabeça pensando mil asneiras. Veio a lembrança do pai remexendo na caixa e pensei que ele poderia ter cometido um suicídio, de tanto esperar o tal aumento da Previdência, que ele aguardava por mais de 10 anos. Mas, não constava que o pai, tivesse arma em casa, muito menos naquele sótão. Lembrei de passar pela estação, onde ele sempre voltava para ver os trens de ferro e conversar com velhos amigos.

Ao aproximar da estação, ouvi um apito que não cessava como se estivesse na boca de criança em dia de festa. Quanto mais aproximava, mais era audível. Quando cheguei ao muro da estação, avistei pessoas olhando para a via férrea, levei um susto, mas de longe vi meu pai, com um apito brilhante na boca e soprando e acenando com as mãos para os trens que vinham em manobras. Um funcionário logo me disse que meu pai invadira a pista com o apito e não reconhecia ninguém. Corri até ele, o abracei retirando dos trilhos. Ele me olhou deixou cair uma lagrima e afirmou que apenas queria mostrar que estava vivo e podia comandar as manobras dos trens, mas que não estava louco.

No outro dia bem cedo, peguei o trem com ele e minha mãe e fomos para a capital onde ele fez vários exames comprovando sua sanidade mental. Que fora apenas uma crise emocional pela perda do irmão. Ele tirou do bolso o apito amarrado a um broche de Honra ao Mérito ao sair da clinica e falou que aquele apito atado ao broche, o acompanhava deste o dia da morte do irmão numa manobra naquela estação e que fora lhe dado como lembrança, mas o seu pai, meu avô, o havia escondido nesta caixa de sapato, para evitar lembranças emotivas, mas ao rever os objetos naquela manhã um filme passou na sua mente lhe empurrando para aquela estação.

De repente um sorriso abriu em seu rosto era o trem que chegava à estação para nossa viagem de volta.
E hoje para evitar alguma recaída, o apito atado ao broche fica com a mãe.

Toninho
21/09/2011.

Uma leve alteração no objeto da caixa e nos personagens.
Coisa desta minha minerice e os trens que povoam meus olhos e ovuidos.
Eu juro que tentei fazer um texto curto.(perdão Sueli)

6 comentários:

  1. Que delícia de texto, Toninho!! As sensações ao ler foram da preocupação ao extremo carinho por esse vôzinho saudoso!
    Belo texto pra começar o dia!
    Bjs

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  2. ..."Ao aproximar da estação, ouvi um apito que não cessava como se estivesse na boca de criança em dia de festa".

    Belíssim texto, Toninhobira. E essa imagem ,entre outras, de uma delicadeza poética sem fim, amei!
    Voce, como sempre, nos emociona demais. coração. "guenta" coração rs.
    grata

    Perdoadíssimo amigo. Com esse presente, imagine.rs

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  3. Ou é um objeto que nos traz lembranças, ou um som, um cheiro, uma imagem... e tem o pensar ter ouvido um gato e o fogão à lenha que nos metem dentro da bucólica Minas!

    Adorei Toninho! O meu ficou ainda maior porque inventei de colocar todos os elementos no texto :) estou tentando cortar um pouco e publicar amanhã! Mas já vou pedindo desculpas de antemão à Sueli :)

    Abração a todos!

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  4. Antecipadamente desculpas aceitas, Cassandra.kkk
    Fique à vontade, querida.

    A ideia de postar "textos curtos" é também um exercício,ou seja,se expressar de forma rápida e clara, escrever pouco e dizer muito é fundamental.
    Enxugar...enxugar...enxugar, mas é só uma orientação.

    abraços

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  5. Toninho! Interessante a sua história. Não sei se sua narração é real ou fictícia. Mas o certo, que está tão bem contado, pareceu-me real.
    Uma história bonita, apesar de triste...mas retratando a verdade de muitos cidadãos, quando você se refere a aposentadoria, longos anos de espera e quando se refere ao sentimento nobre que toda família apaixonada pelos seus membros deverão sentir.
    Memorial que retrata a dor de um ente querido, e que, mesmo tendo passado os anos, a saudade nos invade e nos deixa suscetíveis a essa emoção.
    Uma bela noite.
    Um grande abraço.

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  6. As lembranças da infância se não são lembradas
    imaginadas são. Lindo!

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