domingo, 11 de setembro de 2011

Cruz de Ferro

Cruz de Ferro
“Na volta do cemitério, vovô subiu uma última vez ao sótão, só o tempo de tirar uma caixa de sapatos que, ao descer, entregou a mamãe com algumas palavras de explicação. Dentro havia fotografias, cartões-postais, cartas, um broche e dois cadernos. A letra do mais estragado deles, caprichada no começo ia piorando à medida que se viravam as páginas, até ficar no fim quase ilegível,algumas notas arremessadas que se diluíam no branco das últimas folhas virgens”

Lembro que minha mãe chorou muito ao ler os cadernos e ver os retratos, mas não me permitiu examinar o que havia ali.
E, depois, assustado com a morte de meu pai, e com a discussão que minha mãe teve com meu avô Jörg, pai de meu pai, expulsando-o de casa, nem me lembrei mais da caixa.
Fora que eu me preparava para o meu Bar Mitzvá, no mês que se aproximava.
Agora, após o cerimonial de matzeiva de minha mãe, 38 anos depois, voltei para aquela antiga casa, para encaixotar as velhas coisas.
E encontrei aquela caixa de sapato, que havia anos estava esquecida por mim.
Dentro havia cartões-postais da Bélgica, Polônia, Vichy, Montpellier.
E também cartas dirigidas a pessoas que eu nunca ouvira falar.
Várias fotos de soldados, um deles muito parecido comigo, o mesmo sorriso do meu filho.
Ao ler os cadernos, descobri que eram diários de um soldado alemão.
Contavam sua empolgação ao começar na carreira militar, de como foi seu treinamento, suas primeiras batalhas. Tinha um começo cheio de expectativa e sonhos de um jovem rapaz, de sua bravura, como quando recebeu a 'Cruz de Ferro', mas, no decorrer dos meses, ia mudando os sentimentos, que passaram da dúvida ao mais completo desespero por suas tarefas, que anotava com torturantes detalhes.
E contava também de como foram seus planos para fugir da Alemanha, pois o Fuhrer não tolerava desertores, e se refugiar num país distante, chamado Brasil, onde morava um velho amigo de seu pai, Jörg, o qual o acolheria.
E contava também como, no navio que fugia clandestinamente, conheceu uma linda e jovem judia, chamada Esther, que perdera toda a família em Auschwitz,
E como se encantara por ela.
E como, a partir daquele momento, se decidira judeu.
Ele já conhecia todos os rituais, linguajar e costumes, pois aprendera a reconhecer judeus em seu tempo de soldado.
Com suas condecorações vendidas, menos a Cruz de Ferro, foi pagando sua estadia no novo país, como a moradia, as roupas e a circuncisão e o silêncio de um médico charlatão.
Casaram-se numa linda cerimônia, em que seu novo pai Jörg esteve presente para abençoá-los, e ele abrira um negócio de tecidos.
E depois de um tempo ele voltara a escrever contando que tivera um filho, e, já no final do segundo caderno, fazia esporádicas e rápidas anotações, sobre se era correto ele manter esses cadernos, e se um dia contaria sua historia a alguém.
Ao voltar dessa viagem no tempo, me sentia zonzo, desnorteado. A última coisa que sobrara na caixa era um antigo broche, datado de 1939. Era a Cruz de Ferro.
Eu, um judeu, era filho de um soldado nazista.
Filho da Historia.
Filho da Mentira.
Filho do Amor.
Meu pai nunca havia contado em vida, pois não suportaria o silêncio e o desprezo de minha mãe.
Ela realmente nunca mais falou sobre meu pai.


9 comentários:

  1. Poxa que texto!
    Nossa é de estremecer...
    Bjos achocolatados

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  2. Uma bela história,Josimara. Recheada de suspense,poesia e criatividade.
    Parabéns.

    abraços

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  3. Muito bom o exercicio da Josimara, gostei de como ela criou o suspense e fechamento perfeito para uma lembrança amarga que a mente tenta apagar.
    Parabens Josimara.
    A coisa tá boa né Sueli?
    Estou em fase de conclusão de minhas remexidas nesta caixa de sapato,rsrs.
    Um abraço.
    Bju.

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  4. Tem uma linda pessoa em comum comigo aqui neste cantinho
    http://sandraandradeendy.blogspot.com/
    Gostaria de conferir.
    Obrigada pela sua companhia.
    Sandra

    Seu blog é muito interessante.

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  5. Olá, querida
    A vida tem tanta história pra se contar... e muitas de mistério impenetráveis...
    Bjm de paz e ótima semana.

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  6. Bota boa nisso, Toninhobira. :o)

    abraços meu amigo.

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  7. Trama muito bem bolada:)! Parabéns!

    Abraços.

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  8. Vim ler mais um pouquinho dos textos de tua casa e olha este aqui me deixou muda,estarrecida, meu Deus ela não o perdoou, viveram uma vida juntos, foram felizes, ele mostrou quem realmente ele era, um ser humano que nada tinha a ver com as idéias nazistas e mesmo assim ela não o perdoou, que pena, uma vida de amor rapidamente apagada por um nascimento e uma vida anterior que ele não tinha culpa, quando pode escolher fugiu do horror nazista. Bem perdoar é difícil, mas não para quem ama, beijos Luconi

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