sábado, 22 de janeiro de 2011

Simone

Simone era bem pequena e já estava fadada ao fracasso. Nenhuma súplica muda seria ouvida porque não existiam ali os ouvidos que dessem conta daquele recado. Óbvio. Em um apartamento espremido entre tantas outras coisas de cidade grande, as crianças não crescem como flores nem os cachorros latem pelos melhores motivos. E Simone queria latir de ouvido, como quem canta. Alto, sentindo uma partezinha da garganta que quase ninguém vê (quanto mais ouve!). Ali, ninguém entendia disso, nem sua mãe, nem sua avó, nem seu avô, muito menos seu pai – que não voltava nunca de onde tivesse ido. Para aquela gente, latir, bem, era, claro, coisa para os cachorros. Simone estava fadada ao fracasso.

Não que fosse de todo diferente, tinha lá seus vinte dedos, seus dois peitos por inflar e algumas manias (rosnar à hora do angelus e uivar ao meio dia) como todo mundo tem suas manias. Mas, os avós, que a tudo julgavam ter visto, aquilo não tinham visto nunca, aquilo de uivar à mesa do almoço. O que se crê do que se viu, parece impossível do que nunca se viu, e não se vê por aí as coisas que nascem da impressionante habilidade de ouvir o que não se diz. E assim que ouvia as coisas não ditas, Simone queria dizer de volta, sem ver outro jeito entretanto: só se fosse latindo, sentindo uma partezinha da garganta que ou arranhava ou fazia cócegas e de cuja existência quase ninguém sabia. Isto fazia quando ninguém mais via: latia.

Os doutores eram unânimes em dizer que a coisa toda era psicológica. Os psicólogos eram unânimes em dizer que a coisa toda era esotérica. Os esotéricos eram unânimes em dizer que a coisa toda era física. Os físicos eram unânimes em dizer que a coisa toda era metafísica.

Outros que sabem (quem dera chegassem logo os que ouvem!) diriam que, Simone não falava porque ainda nem sabia latir, o que seria engraçado e do que os Outros Que Sabem ririam às pampas. Óbvio. Se Simone queria antes latir, antes não falaria nada, era, além de muda, coerente com seus princípios. Isso acertaram mesmo, que ela fosse coerente, tivesse olhos em brasa e dentro um grito preso, uma qualquer raiva que, com Simone, ao longo dos anos, ia crescendo.

Enquanto isso, a tudo assistia calada, aprendendo de cor todas as palavras também do inglês para latir em barks quando sozinha, sem ser incomodada.

Durou assim até a azeda festa de aniversário de seus 15, quando a irritou que sua mãe temperasse o bolo com lágrimas e tivesse ainda naquele dia entupido a minúscula sala com balões coloridos que ali pareciam os grandes invólucros dum velho desgosto. Não falou nem latiu. Não comemorou. Abriu a porta e saiu.

Sabe-se bem que as coisas das cidades são todas muito perigosas, que atrás dos postes podem se esconder os seres mais hediondos. A mãe de Simone não se conformava, de um tudo tinha tentado e,se agora se resignava, era porque dois calmantes faziam o bom efeito. Faltou-lhe um pai que chegasse e fizesse qualquer coisa. Era o que se ouvia entre o choro. Faltou-lhe um pai, repetia, aquele cachorro, repetia. Aquele cachorro.

Mas Simone já andava longe, já latia alto, já mijava nos postes e nos seres hediondos que atrás deles se escondessem. Quase como se tivesse pêlos, quase como se tivesse sido criada do nada, quase como se já estivesse na maior idade, quase como uma cadela vadia.

Só muito mais tarde, aos 80, ao meio dia, uivando seu último uivo entre os amigos de sargeta que com ela conheceram o mundo inteiro (Nova Yorks, Londres, Sidneys e Brasílias...) Simone se daria conta de que estivera fadada ao fracasso, não tivesse percebido cedo que a porta daquele minúsculo apartamento, naqueles velhos dias, sempre aberta, jazia.

6 comentários:

  1. Taí meu contozinho que insistiu em rimar umas partezinhas. Deixei. Quem sabe, virou poema!

    []'s

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  2. Uma maravilha de prosa-póetica,Cassandra. E isso independentemente de "rimas",a poesia, como sabemos, vai muito além. O texto todo um belo poema.
    Adoreiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
    beijo.

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  3. Adorei participar e já aprendi bastante com esse primeiro exercício. Espero poder fazer parte dos próximos.

    Beijos.

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  4. Fico satisfeitíssima em saber, Cassandra. E tb adorei tua participação, uma maravilha mesmo!!!
    beijos

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  5. Gostei muito do seu texto. Remeteu-me ora a Metamorfose de Kafka, ora ao filme Nell.....mas independente dessas referências me fez entender uma Simone que está talvez em todos os aptos, casas, ou até mesmo em nós..."fadadas ao fracasso"...lindo, filosófico, poético.
    Parabéns!!!

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