quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Escolha no escuro





Ela não havia nascido cega. Sei, o politicamente correto seria dizer “ deficiente visual”. Mas ela se sabia e se auto descrevia como cega mesmo. Porque a partir do seu ponto de vista, o que havia era a mais pura e absoluta escuridão. Eufemismos são a mais clara demonstração de que é impossível assumir a experiência existencial de outra pessoa. E esta sim, não pode ser minimizada.

Deficiente visual, ela  foi um dia, bem antes. Filha de pais que tinham retinose pigmentar e ainda por cima eram primos, seu destino foi traçado ali mesmo, no leito de sua  concepção. Nasceu com trinta por cento da visão e com um cronômetro acionado, dando-lhe mais uns quinze anos para desfrutar deste acréscimo de misericórdia divina.  Ou não. Seria melhor ter nascido cega, ou ir se tornando aos poucos? Após este tempo tudo se cumpriu e fez-se noite para ela.

Era uma pessoa bastante solitária.  Sem pais, sem irmãos, sem marido, morava sozinha. Seus olhos, embora não enxergassem, eram lindos. Sempre distantes, porque ausentes. Esbelta,  morena jambo, corpo bem desenhado.  Vaidosa, estava sempre impecável. Naquilo que precisava, pedia  emprestados os olhos de alguma amiga para ajuda-la na tarefa de se fazer bela aos olhos dos videntes. Não era rica, mas tinha a vida financeira organizada. Fez curso de massoterapia. Profissional séria e competente, tinha o suficiente  para garantir seu sustento.

Além disto, seus pais haviam lhe deixado como herança um pequeno apartamento, simples e bem localizado. Sabendo que a cegueira seria herdada por toda eventual prole, resolveram ter apenas uma única filha. Ela, por muito tempo se perguntou, não sem alguma revolta,  porque Deus havia escolhido  justo ela como  fruto desta onipotente arrogância de seus pais em procriarem. Viverem um amor improvável e proibido já não teria sido mais do que suficiente? Acabou se convencendo de que foi escolhida porque o universo sabia que ela daria conta de cumprir a sua sina. Seus pais também sabiam. Tanto que a batizaram com um nome que sugeria força e coragem.  Além disto,  brigar com Deus pra que?  Ele está no comando, até para os que não crêem nele. E, ao que parece, tem  prazer em testar, a todo momento, nossas resistências e nossos estômagos.

O prédio onde morava era daqueles antigos, lá pelos lados da Barra Funda. O bairro, depois da migração dos judeus para Higienópolis, era agora totalmente comercial, com alguns poucos imóveis residenciais decadentes. Valentina morava em um deles, bem antigo, de seis andares. O elevador era daqueles cuja cabine se fecha por uma porta sanfonada de metal. Valentina morava no penúltimo andar, vizinha de porta de dois homens, que também moravam sozinhos. Não sabia nada sobre eles. Uma cidade grande como São Paulo é apenas a soma de um monte de solidões. Mas fato é que, ambos estavam completamente encantados e interessados por ela.

Não era razoável pensar que fosse coincidência. Todo dia, quando ela chegava, depois de um dia exaustivo de trabalho, lá estava um deles, ou ambos. A capacidade do elevador era de quatro pessoas. E, de uns tempos para cá, ela nunca subia sozinha. Quando coincidia de os dois vizinhos de porta se  encontrarem, subiam os quatro.  Sim, porque havia um morador do último andar que,  todo dia, impreterivelmente, estava no hall à mesma hora que Valentina chegava. Com o tempo virou rotina: subiam em três; ela,  o  homem do último andar, e um dos seus vizinhos de porta. Estabeleceu-se, naturalmente, ou não, um rodízio entre eles. E o mesmo  era rigorosamente cumprido.

 Território demarcado, armas escolhidas, começou  um duelo pela conquista do coração de Valentina. Ambos pareciam ter uma fome de mais de mil anos, tentando arrebatá-la para si.

O vizinho da esquerda decidiu que iria conquistá-la pelo olfato. Sabia que os cheiros podem ser um convite ao pecado e chamam o sentido da gustação. Ainda mais seria assim  para quem não enxerga, intuiu. Estava sempre cheiroso, marcava sua presença pelo uso de uma deliciosa colônia que aprisionava os cheiros de relva. Parecia passar ventando perto das suas narinas, na esperança de despertar-lhe o apetite. Mas não parava por aí. De início deixava a porta de casa entreaberta e de lá insinuavam os mais exóticos cheiros. Perfumes adamascados e amadeirados. Com o tempo conseguiu fazer com que ela desse uma breve entradinha em seu apartamento para um dedo de prosa. E aí não economiza suas armas aromáticas. Vinham em seu socorro um arsenal de cheiros da cozinha, dos mais variados, dos mais apetitosos, convites à luxúria, bem mais que à gula. E assim, o andar se inundava de cheiros e sedução nos dias ímpares.

Já o vizinho da direita, ia à luta nos dias pares. E apostou em usar armas que a conquistassem pela audição. Sabia o quanto uma voz macia, segura e aveludada pode conseguir de uma mulher. Vivendo no escuro então, não haveria erros. Não é sem razão que ouvimos muitos dizerem que uma mulher é capaz de ir ao gozo guiada pelo que ouve. Deu à vida de Valentina uma trilha sonora, das mais cuidadas e sofisticadas. Um amante e estudioso da boa música, desde sempre,  tocava seu sax com maestria crescente. Também acabou conseguindo dela as mesmas visitas breves. Era então que passou a ler-lhe pequenos trechos de poesia, uma poesia encharcada de conteúdo elegantemente lascivo. E foi assim que, nos dias pares, o andar se enchia dos mais inebriantes e variados sons.

Valentina começou a gostar daquela situação. Nos dias ímpares deleitava seu olfato; nos pares sua audição. Ambos deixavam seus sentidos acesos, cada vez mais à flor da pele. E ela parecia a cada dia, mais viva e bonita como nunca. Mas sabia que não poderia prolongar por muito mais tempo aquela situação. Que teria de fazer uma escolha.

Este acordo tácito entre eles, esta rotina durou meses, até que um dia, ambos se atrasaram. Um tanto desapontada, Valentina preparou-se para subir o elevador sozinha.  Foi então que percebeu a sanfona de metal sendo aberta. Ah sim! Era o homem do último andar, aquele que ninguém notava, silencioso, desinteressado, que havia entrado na história até agora para completar a lotação do elevador.

Subiram. No andar de Valentina o elevador parou dando o costumeiro tranco das máquinas ultrapassadas. Mas, neste dia, o tranco, talvez calculado pelo destino, deixou um degrau entre a porta do elevador e o chão. Um degrau discreto, mas grande o suficiente para que ela tropeçasse. E foi aí que o homem, tentando segura-la antes que pudesse esborrachar no chão, lhe tocou. Um único toque. Sem cor, sem cheiro, sem fala. Seguro e suave o suficiente para se prolongar em uma carícia. Um toque na pele, no vácuo de todos os outros sentidos. Doce toque que a arrepiava e queimava sem arder. Toque capaz de despertar o gosto de um beijo roubado. Com cheiro de cio, inundando o ambiente e anulando qualquer outro cheiro. Toque capaz de se fazer seguir por gemidos, por latidos do coração aos pulos, por frases obscenas sussurradas dentro do ouvido, termos chulos e descompassados, como convém aos bichos.

Perderam-se num beijo, peles fundidas. O espaço entre os dois corpos fundiu-se e, de repente, a luz se fez. Uma luz que preencheu enfim todo o andar. Um luz que tinha cheiro, tinha gosto e que cantarolava, clareando a noite.
Não é pra menos que a pele é o maior órgão do corpo humano. Nela todos os sentidos se encontram e se perdem. E era exatamente nela que estava a porta que abria o caminho para o coração de Valentina.

A escolha estava feita. A cegueira curada. Todos os sentidos despertos, davam agora um  novo sentido à vida de Valentina.

Contaram- me que tudo continua mais ou menos igual naquele velho prédio. Exceto que ela  se mudou para o último andar, de onde saem sons e cheiros que inundam todo o prédio. Os vizinhos do quinto andar, seguem em sua rotina e com sorte, terão novidades pela vizinhança.  É que, na porta do meio agora tem uma placa onde se pode ler: “ Aluga-se” .





4 comentários:

  1. Olá meninas, como combinado o meu texto. Estou estes dias sem net em casa, meu note está com problemas. Mas amanhã devo estar conectada de novo. Foi uma delícia esta coisa de buscar escrever algo que nos foi proposto. O resultado está aí hehehe. Vou ler agora o da Kátia. beijos

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  2. Olha Veroca que interessante, se vc for ler os dois textos seguidos o meu e o seu... ha muitas semelhanças. O predio, o som, e o crucial O elevador....
    Gostei muito..bjs

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  3. Belo texto Veroca,uma explanação e tanto "dos sentidos", (para além de dados informativos,ainda que bem detalhados),a poética é a tônica, com contraponto entre os sentidos vc nos leva, passo a passo, a perceber a importância do corpo como um todo,da presença do outro,o toque a pele suprindo outra(s) falta(s).
    Final surpreendente,uma bela história,personagens fortes/humanos.
    Parabéns!!!

    Hoje trabalhei na parte da manhã,mas estava hiper curiosa , tanto que cheguei e cá estou (rsrs)
    bjs

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  4. Parabéns Veroca!!! muito 10!!!

    Sabe que até eu tive vontade de alugar esse apto...esses vizinhos são bem interessantes!!!

    legal o desfecho ser com o terceiro elemento...genial...

    bju

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