segunda-feira, 16 de maio de 2011

Segundo período da faculdade de psicologia da federal


É difícil precisar o segundo exato em que um qualquer pensamento mata qualquer coisa no corpo que passa então a ser apenas uma memória do que já foi um dia. Mas por um motivo simultâneo, o grupo de amigos do segundo período da faculdade de psicologia da federal acordou na manhã de sexta com qualquer coisa faltando em si, o que resultou em um frenético desejo de cuidar da própria vida. Como só tinham aula na faculdade à tarde, usaram a manhã para fazer coisas.

João cuidou de fazer a barba, cortar o cabelo curto e comprar um tênis que substituísse as alpargatas compradas há dois anos na Bolívia. Marcela telefonou às 10:30 para transformar em ex-namorado o que então era só um cansaço, e confessou desejar sinceramente que ele fosse se foder. Lívia passou na farmácia para comprar drammin, sal de frutas e remédio para o fígado e aproveitou para anotar, equilibrando o cigarro e a caneta entre os mesmos dedos, o telefone da religião perto de sua casa que misturava ioga, budismo e macrobiótica e que não era bem religião, mas uma filosofia de vida. Alfredo foi até a rodoviária comprar passagens para passar o próximo final de semana em Passos e, reunido à sua família, interá-los de seu homossexualismo. Estér escreveu uma lista com dez motivos para não se suicidar e a meteu na bolsinha que carregaria pelos próximos setenta anos. Só Minerva fez exatamente o que fazia todas as manhãs: foi ao treino de dança, como que excluída da necessidade dos outros de mudar porque já tinha os cabelos na altura certa, a cintura de bailarina e o amor voltado todo para a dança. Era o que Estér dizia dela, que não mudaria nunca porque era perfeita e navegava rumo ao futuro como um barquinho charmoso cortando águas mornas e serenas. 

À tarde, quando se encontraram na cantina antes da aula de história, João cuidou de fazer piada sobre seu próprio novo visual e manter escondidas suas verdadeiras resoluções. Marcela gritou que estava solteira assim que foi avistada de longe. Lívia ficou do lado de fora porque estava fumando, não tirou os óculos escuros. Alfredo cismou de esfregar ininterruptamente as palmas das mãos que sentia geladas e quis animar o pessoal a pedir um café quente. Estér pediu uma salada de frutas e gostou do gosto de decidir e fazer o que decidiu: viver: isso disse aos outros sorrindo. Só Minerva não foi à aula, porque passou a tarde morrendo no hospital das clínicas por conta de um aneurisma cerebral. 

Quando souberam da notícia, sentiram escapar por entre os dedos os cuidados com suas próprias vidas e, entre abraços e pêsames, sussurraram que tudo muda de uma hora para a outra à sombra do destino. João trancou a faculdade de psicologia, cursou engenharia, mas só se formou em biologia onze anos depois. Marcela casou-se sem amar, e teve três filhos. Lívia nunca conseguiu parar de fumar. O pai de Alfredo passou quatro anos e três meses sem dirigir-lhe a palavra. Não conseguiram precisar exatamente a hora em que Minerva morreu, mas dizia-se que à mesma hora Estér anunciava, enquanto comia uma salada de frutas, que havia decidido viver. Como Minerva. Como um barquinho charmoso cortando águas mornas e serenas.

Estér morreu aos noventa e três anos, muito depois de seus amigos de faculdade, de quem sentia falta e por quem, às vezes, chorava, especialmente quando pensava em Minerva e desejava lhe falar que era pra ter acontecido com ela, era pra ter sido ela, era para ela ter ido primeiro. E o que pode fazer Estér então, senão viver setenta anos com um motivo a menos.


*Imagem de: Gatnau/Flickr: 
http://www.flickr.com/photos/gatnau/224691493/sizes/m/in/photostream/ (c/c)

7 comentários:

  1. Não sei se gostei muito desse conto, nem se cumpri o exercício proposto... o que me veio à cabeça foi a simultanedade das vidas com que cruzei, caminhei por um tempo e, depois, nunca mais vi... e que agora caminham como que paralelas em um universo distante.

    ... o problema é que não sei se cheguei a transmitir isso... Bom, taí:

    Aceito críticas construtivas numa boa!

    Abraços.

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  2. Ô Cassandra que belo conto. Além de uma história deliciosa, poética você usou da "Enumeração” , um dos modos( recursos) de redigir muito importante na literatura, usado por muitos escritores,aliás, como já costumo deixar sempre duas tarefas prontas, a próxima é exatamente sobre “ esses recursos”, mas não quero tirar a surpresa, não. :o)

    A mim transmitiu (e muito) essa “simultaneidade das vidas com que cruzou” de uma maneira leve, com requintes de humor e tragédia. E de certa forma dentro da proposta, pois ainda que não tenha relatado( os acontecimentos) de forma “velada”, como pano de fundo,mas simultâneamente, o fez provocando uma grande curiosidade no leitor.

    ADOREI!!! E belíssima imagem.

    grata.

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  3. :)não sabia que se chamava enumeração!!! Adoro aprender! Fico encantada com suas análises. Como não tenho formação literária e estou começando, tenho aprendido MUITO!

    Eu sabia que não tinha exatamente se encaixado no exercício, mas de alguma forma cabia também, só não sabia como. Com a sua análise, eu entendi.

    Eu quem agradeço!

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  4. Que bom,Cassandra. Fico com a sensação do dever cumprido, e isso me dá uma alegria imensa. grata.

    abração

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  5. Conto excelente que traduz bela aprendizagem. Muito bom! Abração.

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  6. COM UMA PROFESSORA QUE NUNCA DESANIMA MAS DÁ ÂNIMO E VONTADE DE FAZER, QUEM É QUE NÃO SE SENTE ANIMADA! GOSTEI CASSANDRA DESSE RELATO. É A MINHA CARA

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  7. Obrigadaaaaaaaaaaaaaaaaaa,Lailin. Adoro minha profisssão ,e fico feliz em saber que ´"passo esse ânimo" :O)

    É sua cara sim o relato, mas deixo isso pra Cassandra comentar.rs

    bjaço.

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