domingo, 10 de abril de 2011

Cigana



Tudo começou quando não encontrou o sapato habitual no meio do caminho quando chegou em casa. Estranhou, mas não deu tanta importancia, enfim, estava cansado, talvez um pouco entorpecido pelo alcóol do happy hour e o fato foi logo esquecido junto com o relaxamento do banho quente.
Os dias passaram normalmente, se é que se pode se sentir normal depois de se ver de um dia para outro totalmente sozinho. Há um tempo havia retomado a rotina de trabalho, aos poucos começou a aceitar os convites dos amigos para uma bebida depois do trabalho, as vezes enfrentava a escuridão do cinema sozinho. Numa dessas incursões solitárias visitou uma galeria de artes se encantou com um quadro de uma cigana, havia um realismo no movimento das saias e sedução nos olhos da mulher que o impeliram a comprá-lo. Um pequeno pecado, um presente, um luxo que se permitiu. Primeiro se recriminou pelo deslize, abandonou o quadro sem pendurá-lo sobre um aparador.
Um dia entrou em casa e o cheiro  de café recém coado o encontrou na porta. Um choque. Vasculhou cada canto da casa e não encontrou nada fora do normal além do café na garrafa. Há tempos não fazia café. Ainda intrigado sentou-se na poltrona em frente ao aparador, sorvendo o café quente observou o quadro, a cigana dançando inclinava levemente a cabeça para trás feliz, dançava para alguém, o sol iluminava seu colo, sorriu em se imaginar no cenário do quadro, numa tarde ensolarada de domingo ouvindo o som da música gitana encantado pelos movimentos frenéticos da saia, os cabelos balançando ao vento e ele ali envolvido por aquela beleza morena.
Dormiu ali, na poltrona da sala imaginando a cigana, despertou coberto por uma manta. No final da tarde resolveu pendurar o quadro na parede, ali em cima do aparador de frente à poltrona.
Os dias se tornaram uma sucessão de pequenos agrados, uma luz nova no quadro, um agrado novo na casa. Não entendia o que estava acontecendo mas não conseguia quebrar o encanto. Era para ele que ela dançava e era para ele que fazia daquela casa um lar, quente, que o esperava todos os finais de dia.
Seus instintos o chamavam, os hormônios exigiam dele. Chegou em casa e nada o recebeu, a cigana ali tal qual o dia anterior. Saiu e bateu a porta para que ela tivesse a certeza de que ele estava saindo. Na volta trouxe consigo uma moça que tinha conhecido no bar, morena, bonita e ali na sua poltrona se conheciam, se acariciavam entregues ao momento. Quando no ápice da excitação foram surpreendidos pelo quadro que despencou estatelando-se no chão. E ele passou a  noite aos prantos recolhendo os cacos.

5 comentários:

  1. Linda imagem , Katia.
    E um belíssimo texto poético,narrativa delicada ,mas forte, intrigante. Emociona num crescente desde a primeira linha, adorei e,

    respeitando as devidas diferenças :o),me lembrou "Olhos de cão Azul" de Gabriel G. Marquéz. Se não leu. leia e vai entender do que falo.
    bjão.

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  2. Oxe... Gabriel Garcia Marquez... fiquei curiosa não li esse não... Agora quero ler... obrigada Su.. bjs

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  3. É "Oxe" mesmo :o)

    Quando o Mário Pérsico ,um amigo, disse que um trabalho meu, "respeitando as devi... lembrava G.G.Marquéz, usei o meu famoso Iupiiiii e fiquei muito satisfeita. É bão né? Isso nos incentiva na caminhada literária que é longa, diria infinita.
    bjão.

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  4. Estamos todos sonhando. Que bom ter aberto essa pagina pra saber isso. Já estava entrando em paranoia achando que precisava ser beliscada. Tinha que ser vocês duas! Salva fui! Bjs

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  5. Sou muito fã do Gabo, e adoro "Olhos de cão Azul", acho que a semelhança está torcer a história para misturar o fantástico à realidade do texto, de maneira que, lendo, a realidade fantástica seja palpável e - quase - indubitável. Lendo o texto temos aquela típica vertigem de quando, na vida real, nos deparamos com o fantástico e 'nos beliscamos' para acreditar melhor no que estamos vendo! Super cumpriu! :) Parabéns!

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