quarta-feira, 16 de março de 2011

O Embaraçado

Lá estão as cidades: grandes bichos mal cuidados. Em épocas de chuvas, regorgitam pus e excrementos. Alguns homens pilotam barcos improvisados, outros morrem. Aqui não é para tanto, assim se diz, não, nem tanto. Mas as feridas que nunca se curam denunciam certas indulgências silenciosas que poderiam causar essas mesmas doenças incuráveis ou catástrofes. O lixo não reciclado, os condomínios cercando universos paralelos, as filas acumuladas em supermercados e planos de saúde, os engarrafamentos.

A população não notaria, a não ser que lhe atrapalhasse a hora do almoço, ou da janta. Não que a população seja estúpida, de fato, as indulgências são silenciosas e mesmo que houvesse um silêncio próprio para se ouvir seus ruídos, ainda seria necessário silenciar a voz da própria vida a clamar seus cuidados circulares... E a voz da própria vida, ai, essa quando se cala?  

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A voz da própria vida da repórter do jornal local calou-se: havia qualquer coisa de errado: como um déjà vu. Agora ela crescia a pupila dos olhos para focar melhor o enorme buraco - prostrado no meio de uma avenida pouco movimentada - que acabara de engolir seu carro. Era como se o veículo tivesse sido calmamente espetado em diagonal no asfato. Com rápidos cálculos mentais ela pode entender que, ao parar para fazer o retorno, houvera tempo suficiente para que o carro simplesmente afundasse o focinho no asfalto, como se ali fosse areia movediça.

Foi o hábito de fazer sempre o mesmo trajeto até o trabalho - 5 anos só como âncora - que deu pistas à repórter: eram sempre os mesmos buracos, e além deles deviam pipocar outros e mais outros que talvez estivessem se unindo sob o asfalto para, dentro em breve, engolir a cidade, esse grande bicho mal cuidado.

Estavam por todos os lados, dos que já sabia, soube, até então, desviar-se com maestria, mesmo depois de dez dias de chuvas quase ininterrúpitas, e também por isso ela estranhara que o mais incômodo de todos os buracos - o buraco do retorno - não houvesse aparecido ainda. Agora ela podia entender que os curativos mal feitos dos anos anteriores haviam resultado naquele quase cômico acidente: pois não é que o carro afundara no asfalto? E o próprio carro próprio da jornalista! Que boa pauta!

Convidou o vereador responsável pela conhecida “Operação Tapa-Buracos” para uma entrevista a ser transmitida na hora do almoço (somente neste ponto eu passei a acompanhar de fato a história toda, por coincidência de ter me sentado no sofá àquela hora). A jornalista, que costumava encarar com bom humor os acessos artísticos da maquiadora da emissora, ganhou desta, ares maquiavélicos ao ter sua sobrancelha loira escurecida de marrom claro. Outrossim, o outro âncora arqueava a sobrancelha como quem tivesse perdido muitas rodas para os buracos da cidade e, talvez pela primeira vez em sua carreira, não esboçara um sequer sorriso para o entrevistado (o primeiro, único e último sorriso só apareceria no final da entrevista).

Antes, enquanto era veiculada a reportagem sobre as dezenas de buracos que estavam impedindo o acesso aos bairros mais afastados, além de outros perigosos buracos nas arteriais da cidade e etc, o vereador se atrasava por causa do trânsito e, quando finalmente se sentou na bancada do jornal, já era hora de responder às perguntas.

Ele usava uma roupa das mais comuns, bege muito claro, foi seu primeiro erro. Como não se podia encontrar nenhum detalhe extravagante e interessante para concentrar-se, rir e comentar, porque tudo era tão blasé, inesperadamente, a cidade inteira pareceu se calar para ouvir aquela entrevista (sentada no sofá em frente à televisão, eu parei de mastigar por uns segundos e pude ouvir o silêncio até mesmo daqueles que só conseguem se preocupar com a própria vida. Só se ouvia à televisão).

Logo no cumprimento, o vereador tinha sentido suas bochechas corarem e um fio de suor correr-lhe o centro do peito.  Aquilo era recente, logo ele, que de tão convicto convencera sempre fácil pais, professores, namoradas, eleitores, um verdadeiro talento. Agora - e não conseguia entender por quê - sentia seu estômago liberar bolhas que pressionavam, ao contrário, suas amígdalas e, ele tinha medo de arrotar no microfone.

Começou explicando, em tom de comercial de sukita, o que era a Operação Tapa-Buracos: não convenceu, sentiu uma gota na têmpora, sabia, não convenceu. A repórter aproveitou-se da gota na têmpora como alguém que já encontrasse a presa agonizando: primeiro, pôs o vereador à par de toda a situação de sua própria experiência de sua própria vida de seu próprio carro sendo engolido por um buraco que se repetia ano após ano, sendo sempre remendado às pressas nas estações chuvosas. A operação não teria provado ser ineficiente, sr. vereador? (Eu decididamente parei de mastigar, e até mesmo doze crianças da cidade pararam imediatamente seus afazeres para ouvir a resposta do vereador.)

Mas aí sim algo extravagante e interessante começou a colorir a tela televisiva desviando a atenção da população que, por isso, deixou de ouvir as palavras do político para então estudar-lhe cuidadosamente feições e gestos. Ainda não se dizia nada, o silêncio era preciso. As mãos do vereador tremiam e sua boca, visivelmente esbranquiçada, era como a boca de alguém que atravessasse o deserto.

Dava respostas infantis, não temos tempo, temos que agir rapidamente. Por que não agem no inverno, sr. vereador? No inverno não conseguimos detectar a localização dos buracos. Em épocas de chuvas, os curativos não têm tempo para secar e, de qualquer maneira, aplica-se a segunda camada de piche, como band-aids sobre camadas de pele apodrecida, não, não, para isso não há solução.

A população entendia a falácia, ou era possível que o homem estivesse esbarrando em um dilema desses à essa altura do campeonato? A população entendia a falácia. O que não se entendia, era como o vereador, um sujeito com tamanha cara-de-pau, podia parecer estar (como quem estivesse pela primeira vez na vida) embaraçado.

Ele gaguejava, se queixava do tempo, das muitas demandas. Ainda que costumasse se fartar de feijoada, dormir logo depois e nunca sentir nem mesmo azia, em certo momento da entrevista, sentiu o ácido estomacal alcançar suas amígdalas, tossiu, tossiu, tossiu, tossiu, tossiu, seus olhos se encheram d’água, não conseguia para de tossir. O outro âncora sorriu muito satisfeito com o engasgo do vereador e encerrou o jornal ao som do homem se estrebuchando em soluços.

Não se sabe se aquele pequeno momento à hora do almoço (daquela quarta) no qual a população sentou-se para para prestar atenção às questões da própria cidade, e viu nela um bicho mal cuidado... Não se sabe se aquela atenção dada foi diferente, cuidadosa, silenciosa, de quem parou para ouvir o absurdo e se indignar, não se sabe... não se sabe se o olhar indignado da população mirando a tela da TV foi o que causou no vereador, pela primeira vez em sua vida, os voluptuosos sofrimentos carnais de quem sente culpa. 

A população não sentiu qualquer compaixão pelo infeliz ensopado em suor e mentiras, antes, sentiu uma espécie de catarse semelhante à que se sente quando se mata uma barata ou um rato (ou, pelo menos o que eu senti: se parecia com uma catarse que sinto, misturada com nojo, quando mato uma barata ou um rato). Mas não se sabe...

... O que se sabe, é que o vereador não largou a política depois do episódio, e que, um ano depois, os buracos continuam a pipocar aos montes nas temporadas chuvosas. Ou seja, provavelmente, essa história toda foi inventada e, o que o vereador sentiu de fato, foi o efeito acumulado de muitos anos fartando-se de feijoadas para, em seguida, mergulhar em suas recorrentes e tranquilas sonecas - ainda mais tranquilas e rejuvenescedoras, quando embaladas pelo barulhinho das chuvas de verão. Ai, a voz da vida a clamar seus cuidados circulares! Essa, quando se cala?

3 comentários:

  1. Eu editei tanto meu exercício da parodia poética que acabei nem publicando :) mas passo sempre por aqui. Ainda não comentei os outros porque pelejava com as edições dessa minha crônica que ficou loooonnngaaa. Espero que não se entediem e consigam chegar até o final.

    Bom, não sei se virou crônica ou se invariavelmente eu escrevo contos, mas quis falar de um problema até pequeno em relação ao problema de outras cidades, mas que é um dos incômodos diários da minha realidade.

    Ok... chega de ser prolixa. Espero que gostem! Abraços.

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  2. Bem se longa não importa, o que vale é esta clara e contundente narrativa sobre a degradação das cidades, com seus administradores cada dia menos responsáveis com o compromisso social. As grandes cidades, estas selvas, cheias de armadilhas a consumir o cidadão indignado com tantos desmandos. Eles só podem tossir e tossir para mascarar suas mazelas políticas.Então parabéns por este grito,esta crônica denuncia de um mal geral.Que não se cale nunca esta voz.Meu abraço de paz Cassandra.

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  3. Ah!Cassandra que peninha sobre a parodia, mas que bom que postou "O Embaraçado" uma narrativa "cheia" de questionamento/denúncia/ humor/poesia. Criativo!

    E não se preocupe com a "extensão" o que importa é "ater-se" a proposta do exercício em questão.
    bjus

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