terça-feira, 17 de novembro de 2009

Clarão no escuro.




Valentina morava em um apartamento alugado no antigo e decadente centro de São Paulo. Vendia suas carnes para garantir seu sustento. Mas, a bem da verdade, vendia muito mais que isto. Vendia companhia, vendia alívio para solidões urbanas, vendia mentiras, algumas sinceras. Vendia o equivalente a uma viagem de ópio ou LSD nas veias; com a vantagem adicional de não ser um comércio ilegal. Cobrava por isto, mais que justo.

Todos a conheciam nos bairros da redondeza. Chamavam-na de a “ ceguinha massagista”. Debochada, gargalhava alto sempre que ouvia ou sabia de alguém se referindo a ela desta forma. Como é dificil para as pessoas darem nomes aos bois – e às vacas. Parece doer. Nem ceguinha, nem massagista. Menos ainda deficiente visual e profissional do sexo. O que ela era mesmo era uma puta. E que P-U-T-A! Levava a sério o seu trabalho, nada fácil. Mas também, nada difícil se comparado às peças que a vida lhe pregou, desde sempre. Sagrava-se ao seu profano ofício de corpo e alma. E detestava eufemismos. Saber-se e declarar-se, sem reservas, uma puta, era a mais clara demonstração de que ela nunca teve medo de assumir a sua própria experiência existencial.

Jamais aceitou o papel de vítima. Não combinaria com ela. Seus pais eram cegos de nascença. Por capricho, burrice ou sabe-se lá porque, resolveram jogar dados com Deus. Era a mais nova de três filhos e, na roleta russa de seus pais, ela tinha sido sorteada. Era a única que nasceu cega. A cegueira era apenas a cereja de um bolo feito de pobreza e exlcusão vivida por uma famlia de trabalhadores rurais. Jamais perdoou seus pais por isto. Trazia dentro de si um grito contido, uma revolta que, misturados à uma dignidade nata, davam-lhe forças para seguir. Ainda menor de idade e anciã em espírito, na primeira oportunidade, tirou proveito da sórdida tara que o todo poderoso dono da fazenda, patrão de seu pai, demonstrava sentir por ela.
Acertos foram feitos entre eles para que ela se mudasse para capital e morasse com a família do patrão. A desculpa era de que seria companhia para os filhos pequenos do casal, uma espécie de babá que nada vê. Bem conveniente. A partir daí a historia não foi muito diferente de tantas outras semelhantes. Um dia descobriu que poderia cobrar pelo que vinha dando em troca de comida e teto. E caiu no mundo, literalmente.

Perspicaz, inteligente, não demorou a descobrir que tinha atributos que a diferenciavam no mercado de venda de carnes humanas. Sim, não era só um pedaço de carne nova e rígida. Ela tinha um dom especial. Sua alma era robusta. A alma de um xamã, o curandeiro ferido, capaz de , por isto mesmo, compreender e tratar as feridas alheias. Possuia uma antena delicadíssima com a qual captava todas as dores e desejos do mundo, dos homens em especial. Alem disso, criada solta entre os bichos, e depois filha das ruas, nao conhecia os falsos pudores ou as amarras da moral burguesa cristã. Tão pouco acreditava em Deus, embora soubesse que ele, mesmo não existindo, estava sempre no comando. E, no seu caso, parece que ele sentia um prazer quase mórbido em testar, a todo momento, sua resistência e seu estômago. Para ela a vida era apenas isto: um teste de resistência, uma ordem, um comando. Teimosa, tinha a mania que quase todo excluído desenvolve: mania de sobreviver.

Vivendo às escuras, não era nunca traida pela visão. Enxergar, às vezes, nos cega. Ouvidos atentos, tudo escutava e quase tudo compreendia. Falava pouco,quase nada. Em seu ofício, aprendeu a falar apenas e tão somente o que seus tantos posseiros desejassem ou precisavam ouvir. Abençoada ou amaldiçoada pelos dons de Afrodite, o toque de sua pele, de suas mãos, sua língua, eram capazes de levar o mais racional dos homens a perder a razão. Sábia, a natureza a havia compensado com o dom de iludir e enebriar os sentidos. E a prática a levava perto da perfeição nesta arte.

Solitária, bonita, corajosa, Valentina fazia jus ao seu nome. Puta valente, desejável e desejada. Etérea, fluida e fugidia. Seu corpo e sua alma pareciam feitos de barro. Amoldavam-se nas mãos que a tocavam e se transformavam no que o sonho ou delírio do outro quisessem. Uma gueixa, uma mulher de Atenas, sempre pronta para permitir que dela se servissem sem cerimonia. Reinventava-se e reinaugurava-se a cada novo homem com quem dividia o leito e ai residia seu poder. Saber esvaziar-se de si mesma, fazer –se indigente de desejos próprios e plena dos desejos alheios. Pronta a materializar-se no desejo de qualquer homem que estivesse disposto a lhe pagar por isto. Mas uma vez pago, não sonegava, não trapaceava ,não barganhava. Fazia valer cada centavo.

Talvez porque, uma vez paga, usufruia do quase mórbido e inconfessável prazer em saber que seus homens – era assim que ela se referia a eles – criavam, com o tempo, a mais absurda dependência dela. Como poucas mulheres sabia ler as carências da alma masculina e preenchê-las com sua agridoçura. Por isto mesmo, seu vôo sempre foi solo, nunca precisou que a agenciassem. Sua propaganda era boca a boca e sua clientela fidelizada e selecionada. As condições eram impostas por ela. Sim, havia condições. Dentre as quais, três eram inegociáveis. Jamais atendia no apartamento em que morava; jamais falava palavra sequer sobre si mesma, jamais revelava seu nome verdadeiro. Seu nome de guerra era Cristal. Duro e transparente como seu coração, Valentina se resumia apenas nisto, um coração lindo, duro e transparente como uma drusa de cristal.

O prédio onde morava era daqueles antigos, lá pelos lados da Barra Funda. O bairro, depois da migração dos judeus para Higienópolis, era agora totalmente comercial, com alguns poucos imóveis residenciais decadentes. Valentina morava em um deles, bem antigo, de seis andares. Seus vizinhos, como convém à hipócrita classe média, fingiam não saber do que ela vivia. Mas apenas fingiam. Todos sabiam. Até a perdoavam. Afinal, ser cega lhe rendia algumas indulgências. Ela se lixava pra isto. Alguns, mais genuinamente cínicos, chegavam a se achar no direito de obter favores, literalmente favores sexuais. Mas nenhum se atrevia a propor algo assim, abertamente.
Ela queria mais é que todos se danassem. Todos, menos três de seus vizinhos: os seus dois vizinhos de porta, no penúltimo andar daquele cortiço vertical e um intigrante e silencioso vizinho do último andar. Não sabia nada sobre eles, especialmente não sabia nada sobre o vizinho do andar de cima.

Seus vizinhos de porta não faziam segredo de que a cortejavam. Todo dia, quando ela chegava, depois de um dia exaustivo de trabalho, lá estava um deles esperando por ela. Parecia que haviam combinado um revezamento de cavalheiros. De uns tempos para cá, ela nunca subia sozinha. Subiam sempre em três. Ela, um dos vizinhos de porta e o misterioso morador do último andar que, todo dia, impreterivelmente, estava no hall à mesma hora que Valentina chegava. O ritual se repetia. No quinto andar, a porta se abria, o homem do sexto andar adiantava-se em descer, estendia-lhe a mão para que ela saísse do elevador, sem dizer palavra. Nem mesmo quando ela lhe agradecia a gentileza ouvia dele alguma resposta. Em seguida descia o vizinho de porta do dia, e o elevador se fechava e subia ao som do burburinho de vozes e risos de Valentina e seus vizinhos.
O vizinho da esquerda decidiu que iria conquistá-la pelo olfato. Sabia que os cheiros podem ser um convite ao pecado e chamam o sentido da gustação. Marcava sua presença pelo uso de uma deliciosa colônia que aprisionava os cheiros de relva. Também deixava a porta de casa entreaberta e de lá se insinuavam os mais exóticos cheiros. Perfumes adamascados e amadeirados. Já o vizinho da direita, apostou em usar armas que a conquistassem pela audição. Sabia o quanto uma voz macia, segura e aveludada pode conseguir de uma mulher. Não sem razão, se diz que uma mulher é capaz de ir ao gozo guiada pelo que ouve. Deu à vida de Valentina uma trilha sonora, das mais cuidadas e sofisticadas. Um amante e estudioso da boa música, desde sempre, tocava seu sax com maestria crescente. Sempre que tinha oportunidade, lia para ela pequenos trechos de poesia, uma poesia encharcada de conteúdo discretamente lascivo.

Valentina se enternecia pela delicada devoção que ambos lhe dedicavam. Mas, no seu íntimo, sentia pena deles. Pena por saber que ambos jamais chegariam a tocá-la como mulher. Nem ela mesma sabia qual era o caminho que levava a seu coração, terra de ninguém. Mas sabia os que não levavam. E o sentimento de compaixão, especialmente em uma mulher, esteriliza o terreno para o surgimento de qualquer outro sentimento. Valentina sabia que eles a desejavam e a amavam apesar de ela ser cega e ser puta. Mas era exatamente este “apesar de” o golpe mortal em suas chances de vir a tê-la. Estes dois atributos eram toda sua essência. E ela não se dispunha a viver um amor de ressalvas. Por isto não se dispunha a viver nenhum amor. Business, tudo era business quando o assunto era homem.

Um dia, quebrando a rotina, Valentina chegou na portaria do prédio e não encontrou ninguém. Já estava dentro do elevador , quando percebeu a sanfona de metal sendo aberta. Ah sim! Era o homem do último andar, aquele cujo silêncio, até então, havia sido a tônica.

Subiram. No andar de Valentina o elevador parou dando o costumeiro tranco das máquinas ultrapassadas. Antes que ela pudesse descer, ele segurou seu braço com alguma força e perguntou, melhor, afirmou:
- esta noite quero que suba comigo ao sexto andar. Quero vencê-la com você.
- como?
- quero que gaste comigo esta noite.
- você me conhece de onde? Onde já nos cruzamos?
- daqui mesmo, do elevador. Há meses subimos juntos. Nunca ouviu meu silêncio?
- bem, mas pela ousadia da sua proposta, creio você certamente já ouviu falar dos meus serviços. E deve saber de minhas regras também. Não atendo aqui e não sou barata, nem amadora, isto pode lhe custar caro.
- você não entendeu. Não estou te propondo um negócio. E não sei ser posseiro. Será que tem medo de enxergar?
- enxergar o que cara pálida?
- que você, como toda mulher, pode ser uma puta, e que a quero minha puta?
- você só pode estar brincando.
- nunca falei tão sério.
Ela ainda tentou esboçar alguma frase, interrompida por um beijo de uma língua molhada, entrando atrevida com dente e tudo.
- apenas por esta noite se permita ser um puta, não tenha nenhuma outra intenção que não a de desfrutar de seus instintos junto comigo. Apenas renda-se a eles, por esta noite.

Pela primeira vez Valentina parecia soltou seus bichos e perdeu o controle da situação.Como tergiversar sobre seus instintos mais primitivos, agora soltos, se instintos não se explicam?

Um cheiro de cio inundando o ambiente e anulando qualquer outro cheiro. Entraram no apartamento dele e foderam a noite toda, entre gemidos, corações aos pulos, troca de frases obscenas sussurradas dentro do ouvido, termos chulos e descompassados, como convém aos bichos. Beijos indecentes, peles fundidas.
Acostumada a fazer sexo, desta vez era diferente. Não fazia sexo, nem fazia amor, que amor não se faz, se sente. Era entrega, era a primeira foda de toda sua vida. Despida de
medos, defesas e pudores, de tratativas financeiras ou qualquer outro compromisso, ela descobriu o gozo vindo do tesão indomável de cadela. Liberta, deixou-se usar como objeto maleável e manuseável, de todas as formas. Nada de compra ou venda; somente uma troca maravilhosa de cheiros, umidades, toques e gozos.

O dia quase amanhecendo, ambos exaustos. Uma única pergunta feita com palavras que faziam nexo:
- qual o seu nome?
- Valentina.
Dormiram enlaçados.

Já se passaram meses desde este dia. Ninguém sabe contar sobre o paradeiro de Valentina. Ninguém sabe dizer o que aconteceu depois. Nunca mais a viram depois da noite em que Valentina descobriu ser verdadeiramente uma puta. Porque há em cada mulher um puta que, mais cedo ou mais tarde, se revela pelas mãos de um louco libertino que não as amam com ressalvas. Que as desejam exatamente porque as sabem putas e com elas fodem. Fêmeas no cio, descabeladas, suadas, molhadas, transpiradas, mijadas e genuinamente belas. Mulheres que não são mesmo “flor que se cheire” mas que quem cheira não esquece e pede bis. “Marias sem vergonha” que mais cedo ou mais parte, por um momento mais ou menos breve, se sentem abençoadas. E começam a enxergar o mundo com todas as suas cores.

O homem do último andar também sumiu. Se estão juntos, em algum lugar, ninguém sabe, ninguém viu. Mas por certo, nenhum outro homem, exceto ele, saberia por que nome procurá-la neste mundão de meu Deus.

Ficamos torcendo, eu pelo menos, para que estejam juntos. E que Deus abençoe as putas, todas elas, todas nós.

4 comentários:

  1. Meninas, atrasada desta vez, mas cheguei. Quando mudei a personagem tudo mudou, inclusive o título. Ela não foi baseada em uma personagem em especial, mas em muitas mulheres que fui conhecendo na literatura e na vida também. Não saberia dizer se alguma de Miller ou de Juan Pedro Gutierrez, não reli nada especificamente, até pelo momento complicado que estou vivendo, meio longe da blogosfera. Notei que a cegueira ficou em segundo plano, virou um detalhe da vida passada dela e do motivo de ser como a construí. A mulher, qualquer mulher veio pro primeiro plano e a luz se faz para qualquer mulher que tocada, descobre o gozo. Bem, foi o que deu pra fazer desta vez meninas. À noite venho ler e comentar a Kátia, não quero fazer isto apressada e estou no meio do trabalho. Beijos meus.

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  2. Delicado esse mundo “das mulheres” (nosso mundo) nas suas mais diversas e variadas formas da relação homem/mulher, amor/desamor e de como isso se dá. (E as chamadas “mulheres de vida fácil” (putas), entre tantos outros nomes. O que e como vivenciam?)

    Escrever sobre é uma tarefa dificílima. Plínio Marcos, em “Navalha na Carne”, o fez de maneira brilhante; G. Garcia Márquez em “Memórias de minhas putas tristes” também.
    E tantos outros...

    E a Verôca, a sua maneira, com seu “estilo”, criou (a meu ver) uma Valentina forte, decidida, ingênua, sonhadora. Usos de símbolos, citações, referências (xamãs/Afrodite/mulheres de Atenas/gueixas/ópio/LSD/Deus). Inventou palavras (agridoçura/fidelizada), transitou por muitos universos para “falar” de Valentina/Cristal.

    Júlio Cortazar diz que “das narrativas curtas”, a que mais se destaca é o conto, pois ele se presta a tradução dos sentimentos profundos e das contradições que agitam nossa alma, num tempo que o leitor pode vencer com um só fôlego.
    Ainda que a Verôca tenha optado por uma escrita longa, seu conto prende a nossa atenção.
    (Eu gostei.) PARABÉNS!!!

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  3. Su, ao contrário da Kátia, gostei mais do meu primeiro escrito. Primeiro porque este não ficou maduro ainda, e amadurecer um texto tem a ver com enxugar também. Segundo porque achei este exercício dificílimo. Era como se esta Valentina tivesse de pegar uma carona na vida da outra, hehe, não sei se me entende. Não era uma página em branco, com todas as possibilidades. Ela herdou um contexto que não era o dela. E algumas coisas acabaram não ficando coerentes com a construção que eu faria de uma personagem puta. Os dois do andar dela, neste texto poderiam ter sumido, perderam totalmente a força que tinham no outro. Ela teria de ter interagido desde o início com o do andar de cima prá que este realmente representasse um perigo real à queda das suas barreiras. O não enxergar deixou de ser a tônica. Enfim, achei, independente do momento ser difícil para mim, muito difícil este exercício e por isto mesmo muito bom. Quero depois tentar de novo. E estou sim, gostando deste seu jeito de nos desafiar, nunca escrevi desta forma, a partir de uma proposta externa. Obrigada sempre. Um beijo carinhosos, Veroca

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  4. Fico feliz!!! que goste "desses desafios" e é isso mesmo Verôca, "enxugar...enxugar...enxugar" já dizia o velho Borges e a nossa maravilhosa Lispector: "dizer tudo(quase) escrevendo pouco" (+ou-isso) (rs).A gente chega lá!!!!
    Em tempo, adorei Valentina.

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