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Cruz de Ferro |
“Na volta do cemitério, vovô subiu uma última vez ao sótão, só
o tempo de tirar uma caixa de sapatos que, ao descer, entregou a mamãe com algumas
palavras de explicação. Dentro havia fotografias, cartões-postais, cartas, um
broche e dois cadernos. A letra do mais estragado deles, caprichada no começo
ia piorando à medida que se viravam as páginas, até ficar no fim quase
ilegível,algumas notas arremessadas que se diluíam no branco das últimas folhas
virgens”
Lembro que minha mãe chorou muito ao ler os cadernos e ver
os retratos, mas não me permitiu examinar o que havia ali.
E, depois, assustado com a morte de meu pai, e com a
discussão que minha mãe teve com meu avô Jörg, pai de meu pai, expulsando-o de
casa, nem me lembrei mais da caixa.
Fora que eu me preparava para o meu Bar Mitzvá, no mês que
se aproximava.
Agora, após o cerimonial de matzeiva de minha mãe, 38 anos depois, voltei
para aquela antiga casa, para encaixotar as velhas coisas.
E encontrei aquela caixa de sapato, que havia anos estava
esquecida por mim.
Dentro havia cartões-postais da Bélgica, Polônia, Vichy,
Montpellier.
E também cartas dirigidas a pessoas que eu nunca ouvira falar.
Várias fotos de soldados, um deles muito parecido comigo, o
mesmo sorriso do meu filho.
Ao ler os cadernos, descobri que eram diários de um soldado
alemão.
Contavam sua empolgação ao começar na carreira militar, de
como foi seu treinamento, suas primeiras batalhas. Tinha um começo cheio de
expectativa e sonhos de um jovem rapaz, de sua bravura, como quando recebeu a
'Cruz de Ferro', mas, no decorrer dos meses, ia mudando os sentimentos, que
passaram da dúvida ao mais completo desespero por suas tarefas, que anotava com
torturantes detalhes.
E contava também de como foram seus planos para fugir da
Alemanha, pois o Fuhrer não tolerava desertores, e se refugiar num país
distante, chamado Brasil, onde morava um velho amigo de seu pai, Jörg, o qual o
acolheria.
E contava também como, no navio que fugia clandestinamente,
conheceu uma linda e jovem judia, chamada Esther, que perdera toda a família em Auschwitz,
E como se encantara por ela.
E como, a partir daquele momento, se decidira judeu.
Ele já conhecia todos os rituais, linguajar e costumes, pois
aprendera a reconhecer judeus em seu tempo de soldado.
Com suas condecorações vendidas, menos a Cruz de Ferro, foi
pagando sua estadia no novo país, como a moradia, as roupas e a circuncisão e o
silêncio de um médico charlatão.
Casaram-se numa linda cerimônia, em que seu novo pai Jörg
esteve presente para abençoá-los, e ele abrira um negócio de tecidos.
E depois de um tempo ele voltara a escrever contando que
tivera um filho, e, já no final do segundo caderno, fazia esporádicas e rápidas
anotações, sobre se era correto ele manter esses cadernos, e se um dia contaria
sua historia a alguém.
Ao voltar dessa viagem no tempo, me sentia zonzo,
desnorteado. A última coisa que sobrara na caixa era um antigo broche, datado
de 1939. Era a Cruz de Ferro.
Eu, um judeu, era filho de um soldado nazista.
Filho da Historia.
Filho da Mentira.
Filho do Amor.
Meu pai nunca havia contado em vida, pois não suportaria o
silêncio e o desprezo de minha mãe.
Ela realmente nunca mais falou sobre meu pai.