Hoje
20.03.2020 – Estamos confinados. Uma prisão onde devemos sair ou ao mercado
ou a farmácia. Então você faz tudo que tem para fazer e ai não fica mais nada a
não ser a neura do tormento dessa maldição que se abate em nossas cabeças. A
presença da doença e da morte. E já não temos mais saco para ficar descobrindo
algo para fazer, para fugir dessa realidade escabrosa, terrível. Já deitei,
cozinhei, li o jornal, limpei os armários, as gavetas, vi as mensagens e o
status de todos pelo wattzapp, deitei, cozinhei e então percebi que se não tomar cuidado ficarei
doente. Ontem vi uma senhora solitária sentada no banco, senti vontade de cumprimentá-la,
dizer bom dia, mas então achei melhor não e passei por ela para não contaminar
do que não sei. Talvez da solidão. Na volta ela estava no mesmo lugar. Então eu
disse a mim mesma, vá até ela, e foi o que eu fiz. Iniciamos um diálogo e ela
começou a falar sobre o seu marido morto em setembro de 1999, no ano passado.
Procurou no telemóvel uma foto dele, com o ventilador, ou entubado como dizemos
no Brasil. Olhei para a foto daquele homem e realmente estava cadavérico.
Perguntei se tinha filhos. Disse ter três. Menos mal, pensei. Terminou falando
sobre o Covid-19. Disse que nunca tinha visto isso em toda a sua vida. Nem eu. Ouvi mais alguma coisa e então fui embora. No autocarro uma mulher não parava
de falar de forma histérica. Contava sobre o que as suas amigas faziam e dizia
que não iria ficar neurótica. Falou de suas manias de limpeza e que não iria
ficar neurótica. Novamente ela repetia a mesma palavra. Finalizou sobre as
novas ordens governamentais e que não iria ficar neurótica. Eu desci no próximo
ponto com a sensação plena de que aquela mulher estava neurótica. Hoje dia 20
foi decretado estado de calamidade pública no Brasil. Estava fazendo um lanche
já tarde da noite e senti uma falta danada do lord. Senti saudade da sua
companhia, de ver ele ali fazendo algo, embora distante de mim. Seu silencio,
sua voz uma vez ou outra. Sua bermuda, seu chinelo de ficar em casa. Senti uma
dor no coração, mas que depois graças a Deus, na sala peguei novamente o tele móvel e fui vendo as noticias do dia e a coisa foi passando e tudo foi
sumindo ficando abafado dentro de mim, lá no sótão do coração. Estou
desempregada. O café em que trabalhava o dono dispensou meus serviços. Claro eu
não tinha contrato e o estado de emergência estava sendo declarado. Reclamar a
quem? Acho tão esquisito e sem sentido alguém dizer agora não pode mais beijar,
abraçar, ficar perto. Como se ninguém soubesse que isso era feito somente para
mostrar ao outro que estava olhando ou Deus. Claro que não todos. Conheci quatro
irmãs que não cansavam de dizer umas as outras: Eu te amo. Amo-te. Achava tão
lindo aquilo. Era tão sincero. O jornal de hoje tem uma reportagem sobre os
idosos. Uma senhora em seu depoimento folheia o livro sagrado, uma carta do
apostolo Paulo: “Combati o bom combate terminei a minha carreira, guardei a fé”
– Leu a idosa. Depois disse: “Isso há de passar. Vai passar não vai?”. Ao mesmo
tempo a senhora faz uma afirmação e uma pergunta contradizendo com sua fé no
livro sagrado. Não guardou a fé. Estamos como ela? Sei que desde que me conheço
por gente não confio nos homens e nem nunca confiarei. A confiança nele é
momentânea depois vem o desgosto. Já com Deus não, é para toda vida. Digo isso
como uma não religiosa, alguém que acredita nele sem precisar de intermediários
exceto seu filho Jesus Cristo. Finalizou a conversa.
Hoje dia 25.03.2020 mais de 5.224 mortos na Itália em virtude do Covid-19. Hoje dia
25.03.2020, foi ontem. Hoje é dia 11 de abril de 2021, demorei um ano e quase
um mês para voltar a esse caderno e digitar minhas sensações perante essa
tragédia toda. Esse ano que não terminou. Retorno a elas e leio: Espanha mais
de 2.800, França 1.100, Irã 1934. Estou quase acreditando que o jovem que dorme
na cama ao lado tem razão em passar as noites em claro e os dias dormindo. Ver
esse dia lindo para quê? Me digam para quê? Para procurar uma alquimia e
esquecer o que é viver? Ontem por volta das 21hs comecei uma oração que ainda
não terminei, hoje já são quase 14hs e ainda não terminei, estou na mesma
oração, teve começo, mas não tem meio e nem fim. Comecei clamando ao Pai em
nome do filho, foi quando comecei a sentir vergonha das minhas intenções pois
eu não sabia distinguir se estava ali para pedir em minha infinita pequenez ou
se para reclamar no pedestal da minha arrogância e infelicidade. Agora entendo
porque muito preferem a ladainha repetitiva do padre e dizem isso até a
exaustão. Exaustão de quem? De si mesmos. Pois Deus tem mais o que fazer e não
autorizou ninguém a repetir a ele coisas que ele já sabe. E assim esse dia
passou e uma nova manhã raiou e eu esqueci que na noite anterior desejei
acordar cedo para ver se encontrava a gloriosa estrela da alva brilhando no
céu. Acabei esquecendo e fui lembrar desse desejo agora dentro do autocarro
enquanto sigo com destino a Leça da Palmeira. Sô existe eu e o motorista dentro
do ónibus. Se não visse algumas pessoas andando na rua diria que estou
transitando em uma cidade-fantasma. Referente a oração acho que não vou
terminar tão cedo, espero que não tão tarde. Essa solidão que agora me é
imposta não é nova em minha existência. Sempre existiu. Quando mergulho numa
espécie de angústia quando o dia acaba e a noite começa eu continuo a conservar
a lembrança de um mundo cheio de luz. Não este envolto em trevas, mas aquele
outro que o Criador promete.
Estava pegando a
toalha para tomar banho e comecei a perguntar: Para quê? O que irei fazer logo
após o banho? Andar como um fantasma tendo como saída somente duas coisas,
supermercado e farmácia. Eu não quero comprar pão para viver e remédios para
morrer. Tipo um engov antes, um engov depois. Obrigada por me darem essa
ansiedade misturada com doses de neurose. Não quero drogas. Não quero gula. Não
sou doente. Obrigada por tudo isso. Por não conseguir mais terminar um livro,
ver um filme. Ou se consigo não saio dessa realidade, desse pensamento desse
holocausto. Todas as manhãs contando os mortos. E ainda dão ordens de como
vamos viver. Quando nem ao menos sabem do que se morre. E vivemos uma enorme
incerteza neste momento em que digito esta última palavra. Há três dias atrás
antes de dormir comecei uma oração que ainda não terminei. Como pode uma oração
sem fim? Ontem na janta tentei agradecer a comida mas não consegui, ficou
engasgada na minha garganta juntamente com a comida. Olhando pela janela vi uma
grama verde e o sol batendo nela. Pensei em ir até lá, deitar e pensar. Talvez
consiga ler, olhar as nuvens e terminar minha oração. Então lembrei que
colocaram faixas nos bancos para os idosos não sentarem, para não fazerem
aquilo que os mantinham vivos por mais um tempo. Sentarem no banco e ali
ficarem olhando o nada. Porque a velhice traz isso: o NADA. Foi então que meus
braços foram perdendo a força para levantar e voltei a deitar na cama e fiquei
olhando o teto branco. Um holocausto. A operadora ligou e mandou a mensagem que
dia 30 preciso colocar saldo. Então que no meio de tantas mortes encontro
noticias dos famosos e suas vidas eternizadas, eles e suas casas maravilhosas,
confinadas e com tudo de bom em abundância dizendo aqueles que nada tem fiquem
em casa. A esposa do R7 passeia com seus filhos e alguém do BBB está sendo
eliminado e ainda estão construindo casas e mais casas e vendendo isso e
vendendo aquilo, e mandando mensagem que logo isso vai terminar, como se
estivesse no poder deles fazer alguma coisa diante de tantas mortes. Sinto
cheiro de corpos em decomposição vindo dos quatro cantos da terra.
Sonhei com o
lord esta noite, hoje dia 08.04.2020. Sonhei que ele estava arrumando as coisas
e indo embora. Ia para um país desconhecido. Não lembro qual. Sei que era
longe… meu coração doía.
Estou agora
sentada em uma pedra em frente a praia de Leça da Palmeira. É uma época
difícil, época da peste. Pudera ficar aqui, morar debaixo de uma dessas pedras
sem precisar de mais nada, como as aves os peixes e os insetos marinhos. Se é
que existem insetos marinhos. Comer ou tocar como faço agora das ervas e flores
que nascem entre as pedras. Ser abraçada pelo vento amigável que despenteia
meus cabelos, o sol que aquece meu rosto e a doce canção do mar em seu vai e
vem, em uma sintonia suave tocando tranquilamente nesta tarde de sexta-feira.
Pudera me transformar na espuma das ondas do mar ir até a areia e continuar dia
após dia nesse vai e vem sem fim. Trabalho como ajudante de cozinha em um take
way. Não posso falar mal daqueles que ora me ajudam. Não sou ingrata, mas
aquele homem cozinheiro e dono do estabelecimento é de uma porquice sem
tamanho. Aquele homem espirrou quatro vezes próximo a panela de comida que
estava fazendo e eu senti nojo dele. Quando espirrou senti vontade de abrir o
guarda-chuva para me proteger. Pior ainda foi o dia em que limpou o nariz no
pano da cozinha e colocou ele no mesmo lugar. Se fosse somente ser um fumante
inveterado com as cinzas caindo pelas panelas daria até para suportar, mas
nessa era da peste é inadmissível.
É tão grande esse tormento!
Lailin (Márcia Mesquita)